Clarice Lispector escreveu para você

clarice jovemOlá;
 
 Haveria um grande silêncio em mim, mesmo que eu falasse… o que te falo nunca é o que eu te falo, e sim outra coisa.
 
Mas renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento…
 
 
Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já sei que meu ódio é um amor irrealizado, meu ódio é uma vida ainda nunca vivida. Pois vivi tudo – menos a vida. E é isso o que não perdôo em mim, e como não suporto não me perdoar, então não perdôo aos outros.
 
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro…
 
Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse seu único meio de viver. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.
 
Não quero que lhe aconteça nada; nunca! Dê lembranças à titia.
 
Clarice
 
O texto acima foi escrito, palavra por palavra, pela autora brasileira Clarice Lispector (falecida em 1977). Contudo, ela jamais o escreveu desta forma – trata-se de uma colagem de frases que fiz usando trechos seus.
 
Na verdade, tal coisa é possível porque sua obra toda é como uma única e grande carta, cuja destinatária original parece ser a mulher. Clarice Lispector costuma tocar muito mais os corações femininos que os masculinos. Por mais apaixonados que possamos ficar por seu estilo contundente, nós que não somos acometidos por TPMs todos os meses não conseguimos o mesmo grau de empatia com Lispector
 
 
woman heart pictureClarice, nascida na Ucrânia mas brasileira desde os dois meses, escrevia sobre (e com) angústia – um tipo particular de angústia, feminina, essencial – eu diria até mesmo uma angústia evolutivamente superior. Há algo em suas palavras que a nós, homens, pode soar como alarmante – mas a muitas mulheres transmite um alívio de identificação. Do que conheço (pouco) das mulheres, arrisco dizer que a imensa maioria delas acreditaria tranquilamente que a colagem acima é uma carta (ou um e-mail, este é o século XXI) escrita e destinada à sua própria pessoa. Até os romances de Lispector tem uma estrutura intimista que os assemelha a textos epistolares.
 
Isso me lembra uma frase do personagem Holden Caufield (do “Apanhador no Campo de Centeio” de J.D. Salinger): “Bom mesmo é o livro que quando a gente termina quer ficar amigo do autor só para ligar para ele sempre que tiver vontade.”
 
É impressionante como mulheres de todas as idades e classes sociais enxergam-se nela. “Clarice Lispector me entenderia” é uma comunidade ativa da internet, dominada em quase sua totalidade por mulheres. Não há um similar para o gênero masculino, não nestes termos. Não consigo lembrar de um autor que exprimisse algo como uma “alma masculina”… o mais próximo que posso imaginar disso é toda uma classe de autores marginais como Bukowski, mas talvez neste caso eu esteja confundindo masculinidade com niilismo. Sei lá.
 
lonelinessAmo mulheres, em todos os sentidos – elas são a melhor expressão intelectual e emocional da raça humana. Mulheres podem fazer quase tudo que um homem pode fazer, mas há uma vastidão de coisas que mulheres podem fazer muito melhor (entender Lispector sendo uma delas). Homens são o Homo sapiens versão básica, mulheres são o upgrade.

Mulheres, não sejam tão severas consigo mesmas por nossa causa… Não somos seres dignos de que arranqueis vossos cabelos. Vocês sentem esta irritante necessidade de nossa presença em suas vidas mais por imposição biológica que por nossa real capacidade de fazê-las felizes

E vou arriscar um palpite com cara de filosofia de botequim: a ausência de uma mulher é mais insuportável para um homem que a ausência de um homem para uma mulher.

valentine's day postcardUma mulher pode, tranquilamente, me jogar na cara “você é incapaz de compreender a obra de Clarice Lispector como eu” e eu, apenas para não dar o braço a torcer, vou retrucar: “e você é incapaz de compreender a alteração tática de Zagalo na seleção de 1970 como eu!”.
 
 lispector thumbnailObviamente, depois que eu disser isso, ela vai sorrir com ironia e assumir um (merecido) ar de superioridade… e terei de me recolher à minha insignificância masculina.
 
 
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5 respostas para Clarice Lispector escreveu para você

  1. NADIA CRUZ disse:

    BRAVO!!!
    AMEI!!!
    VC ESTÁ SE SUPERANDO, SABIA???
    CURTO CLARICE, MAS ACHO ELA MEIO DEPRE….SOU BEM HUMORADA, ALEGRE, SEM SER HIENA…E GOSTO DE UM OUTRO TIPO DE LITERATURA…
    OUTRA COISA…NÃO TENHO TPM…rsrsr
    BJS CARIOCA!
    NÁDIA

  2. Fernanda Moraes Catelli disse:

    Definitivamente me rendi ao seu blog! Eu amo Clarice exatamente do jeito que ela escrevia (e ainda o faz, mesmo que por intermédio de trechos “copiados e colados” que se encaixaram perfeitamente).Chapéu tirado pra vc!
    Ahhh não posso deixar de lhe dizer que (in)felizmente eu tenho TPM e SIM, eu (acho que) entendo a alteração tática que o Zagallo fez na copa de 1970! hahahaha
    Bjos

  3. arleiro disse:

    Mas Fernanda…
    se você entende a alteração tática do Zagalo, então eu vou cortar os pulsos, porque era o que eu ainda pensei que faria melhor que uma mulher… 😀

    Seja bem vinda sempre, obrigado!

  4. alda disse:

    Nossa maravilhoso texto, achei que fosse maluca por ter essa identificação tão forte com a Clarice, gosto de várias outras escritoras, mas com ela tenho uma a sensação de nos conhecermos a séculos… lembro de ter lido um de seus livros que eram cartas escritas a vários amigos e pensar “meu Deus parece que sou” rsrsrs
    Seu blog é o máximo! bjo

  5. ariana disse:

    ADOREI! haha

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