Estar-se preso por vontade…

Impressiona-me pensar que, em quase todas as formas de sociedades patriarcal, o modo de prender uma mulher foi uma questão essencial para a manutenção da estabilidade da tribo.

As religiões do chamado ramo abrâmico (judaísmo, cristianismo, islamismo), em especial, deixavam claramente expressa sua visão da mulher como uma criatura a ser possuída, resguardada, protegida e… como fosse uma criança imatura, tolerada até certos limites. Burcas, restrições de gênero e deveres matrimoniais ainda subsistem em muitas sociedades modernas, até (de modo mais velado) na nossa.

Para os homens, a questão mais preocupante era a fidelidade feminina – a julgar pela literatura sacra ou profana, a mulher sempre foi considerada como potencialmente infiel: bastaria dar-lhe a chance. Não que o mesmo não fosse verdadeiro aos homens… mas a infidelidade masculina nunca representou um problema social (afinal, o ônus de responsabilizar-se pela descendência é sempre da mulher). Assim, apenas a infidelidade feminina era considerada uma infâmia.

Levando em conta a idéia da “posse” de um “animal” que é, por natureza, dado a “fugir” sempre que tiver oportunidade, torna-se natural a adoção de medidas que impeçam este ato indesejado (acorrentá-lo, por exemplo…). Seguindo este raciocínio, o homem limitava os movimentos da mulher que ele “possuísse”, limitava a exposição de seu corpo, limitava seus atos e até sua instrução, e sobretudo limitava ao máximo as possibilidades de que ela viesse a ter algum contato com outros homens. Tudo seria apenas curiosidade antropológica, se não percebêssemos este mesmo comportamento (ou ao menos seus ecos) nas ruas que atravessamos todos os dias.

Dentre outras tantas coisas, poder-se-ia alegar que tal “posse forçada” tem muito a dizer sobre a insegurança do “possuidor”: afinal, um homem que demonstra tal selvageria deve acreditar que só mantém a companhia da mulher desejada pela força. Mas há outras nuances do problema, entre elas a noção de competição entre os machos – que também existe entre as mulheres, mas tem contornos mais sutis: para uma mulher, costuma ser mais importante o que o homem sente e não o que faz (muitas usam este argumento para perdoar traições). Para um homem, um ato físico entre sua mulher e outro homem pode ser mais ofensivo que a natureza de seus sentimentos, por exemplo. E etcs…

Não à toa, a literatura está cheia de referências magníficas à fidelidade feminina, quase como se ela fosse um atributo divino: Penélope, por exemplo, que espera quinze anos pela volta do marido Ulisses, recusando todos os pretendentes com a alegação de que só escolherá outro marido quando terminar o manto que está tecendo – e para retardar o processo, desfaz à noite o que teceu de dia (na verdade, Ulisses não lhe foi igualmente fiel nestes quinzes anos…) . Bem no fundo, até mesmo os homens que não são brucutus ou senhores de escravas sonham com uma Penélope, fiel até mesmo ante a desesperança. Novamente, entre outras coisas, orgulho… mas não sejamos hipócritas ou cínicos demais para descartar o verdadeiro sentimento de companhia, como aquele dos casais de lobos fiéis um ao outro por toda a vida.

O que, então, “prende” uma mulher, além de celas, cintos de castidade, burcas ou a sombra opressiva de um tirano doméstico? Ouvindo conversas femininas aqui e ali, já me deparei com a afirmação de que “mulher feliz não trai jamais”, dita de modo a sugerir que o mesmo não é válido para os homens. Antes de continuar, levanto minha humilde opinião de que muitos homens felizes também jamais trairão… mas vamos adiante.

Mulheres não são bebês ingênuos ou animais interesseiros que irão atrás do primeiro pedaço de carne exposto à sua frente na ausência do “dono”. Talvez esta seja a falácia mais machista da história da humanidade. Mulheres, com as devidas sutilezas, são apenas uma variação de genêro da raça humana, com os defeitos e qualidades do homo sapiens (e mais qualidades que sua contraparte masculina). Não sou autor de auto-ajuda, nem psicólogo, nem socioantropólogo, mas mantendo um blog que se atreve a dar pitacos em tais embaraços morais, asseguro-me o direito de opinar que deixar-se “prender” a alguém é, sobretudo, questão de escolha – de ambos os sexos.

Então não disse Camões sobre o amor…:”...é estar-se preso por vontade – é servir a quem vence, o vencedor…”. Quem ama decide estar preso, pela sutil variação comportamental que torna o(a) companheiro(a) uma parte de si, um contraponto essencial para o desempenho do drama da existência. É escolher o ator (ou atriz) com quem se quer dividir o palco no diálogo que justifica tudo, que dá sentido à peça da vida. Esta “fidelidade” é na verdade confiança – não apenas a confiança no outro para consigo (que é a confiança egoísta), mas uma confiança mútua e além das individualidades; a confiança de que, indiferente de qual dos dois errar sua fala, o outro auxiliará a manter o diálogo frente à platéia.

Talvez seja apenas isso. Nem segurança, nem poder, nem dinheiro, sexo, juventude ou a velha e persistente dominação. O que realmente prende os humanos é… a vontade de estar preso. Uma vontade que vem como efeito colateral de uma emoção sempre mal definida, nunca compreendida, mas onipresente na história da humanidade: a mesma emoção que, esta sim, seria a verdadeira fiandeira por trás do manto de Penélope… aquela que, em português, Camões escreveu com quatro letras…

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3 respostas para Estar-se preso por vontade…

  1. ilberto disse:

    Arlei, como sempre fantástico e arrasador. Tuas palavras são como uma arma. Atacam e defendem. Acho que a questão da apreensão também vai do momento, já que felicidade e ódio são de curta duração também. Abraço.

  2. Oi Arlei, que saudades dos seus textos, mais uma vez maravilhoso.
    Só posso falar pelo meu relacionamento e após muita reflexão diante das dificuldades e do que nos leva a permanecer juntos eu acho que acima do amor, do companheirismo, e tudo o mais que cabe num relacionamento eu cheguei a conclusão que estamos juntos há quase 11 anos pq minha vida é muito melhor com ele, ele traz coisas novas todos os dias, me ensina sem querer a ser mais leve, não levar as coisas tão a sério….enfim, ele me faz uma pessoa melhor.
    E eu acho que essa é uma das melhores e mais duradouras formas de felicidade que vem em ondas obviamente (pq não existe “felicidade 24h”, ao menos eu não acredito, rs), pq quem não quer ser uma pessoa melhor? Quem não quer crescer, amadurecer, se entender e assim ser mais feliz?
    E nada como o ensinar e aprender do dia a dia de um casamento.
    Bjos

  3. Dhayene Andrade disse:

    Adorei o texto bem colocado “È um estar-se preso por vontade” pura verdade.

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