Thoreau, Lispector, Boyle… por vidas menos ordinárias

O ensaísta americano Thoreau (de novo ele) teria dito: “grande parte dos homens vive vidas de silencioso desespero”. O autor referia-se àqueles que vão “levando a vida” sem apreciar o modo como vivem, e embora externamente conformados com a imutabilidade de seu destino, estão permanentemente assombrados pela ausência de perspectiva de mudança no futuro. É uma frase célebre, eventual e periodicamente resgatada do limbo da história – o que indica que o desconforto com a mediocridade da vida é um ato incorporado em nossa cultura há muito tempo. Talvez desde que a luta pela sobrevivência tenha deixado de ser tão intestina que o homem pôde deixar de viver correndo de predadores para prestar atenção na decoração da caverna…

Às vezes escorregamos na armadilha de pensar que a infelicidade é uma palavra muito dura, sinônimo da desgraça, da tragédia, do dramalhão: infeliz é quem não tem onde morar, o que comer, que padece de câncer terminal, que perdeu a família no tsunami, e o resto é besteira… Não é o que nos dizem, acompanhado de tapinhas nas costas, se nos queixamos do incômodo de nossa rotina?

Ah, mas será?

Comparo a instatisfação com a ordinariedade da própria vida com um dispositivo de tortura medieval, chamado por alguns de “Cadeira de Judas”: um simulacro de trono recheado de ressaltos pontiagudos (que ainda podiam ser aquecidos), no qual o torturado deveria permanecer sentado a bel-prazer do torturador. Vista de longe, a vítima pareceria apenas a ocupante de uma poltrona comum.

A opressão de uma vida que não vai para frente, em que os sonhos morrem antes mesmo de nascer, pode ser tão cruel quanto a catástrofe – aliás, desta última quase sempre há rotas de fuga, períodos de superação e crescimento, mas da prisão de uma vida ordinária muitas vezes não há saída. A mídia que criamos e ajudamos a manter desde o século XIX grita a todo instante que TEMOS de ser felizes, vencedores, bem sucedidos, MELHORES QUE OS OUTROS, por isso acordar todos os dias sob a égide uma rotina ordinária e sufocante é ainda pior que na época de Thoreau.

O romance mais famoso de Clarice Lispector, “A Hora da Estrela“, toca justamente nesta ferida; sob o prisma da nordestina Macabéa e sua vida de horizontes limitados e sonhos mal paridos, cujo único momento de notoriedade e fuga do lugar-comum é a morte trágica no asfalto, quando “vomita uma estrela de mil pontas”. A sensação de sufocamento transmitida pela prosa de Lispector, apesar de incontestável, não é nem de perto comparável à das vidas de silencioso desespero que desfilam por nós todos os dias, nos ônibus lotados, nas filas de caixa eletrônico, nas passarelas de pedestres, no congestionamento das seis da tarde, nas esquinas mal dobradas entre camelôs e atrasados (sempre, sempre, sempre atrasados para alguma coisa).

Oh, maldito paradoxo: em tempos onde mais interessante e maravilhosa a vida se desdobra para o homem comum, mais e mais ele parece se enredar na opacidade e falta de perspectivas de seu cotidiano. O filme “Por uma Vida Menos Ordinária”, de Danny Boyle (1997, com Cameron Diaz e Ewan McGregor nos papéis principais, um belo casal), também brinca com o tema, mostrando que mesmo na aparente plenitude de uma vida milionária (a personagem de Diaz) a “maldição de Thoreau” pode se infiltrar. Aqui, tudo vai acabar bem, graças ao truque do “tente, invente, faça uma comédia romântica sem final diferente”… Boyle não é Tarantino, claro. Mas não é totalmente descabido acreditar na premissa do roteiro deste filme: às vezes é preciso dar um chute na porta da vida para encontrar a saída.

É, não deixa de ser uma boa metáfora essa… dar um chute na porta da vida. Claro, os presos na armadilha às vezes sequer conseguem mover as pernas… mas acredito que, seja como for, nunca podemos perder a capacidade de debater-se, de resistir, de (mesmo com o laço no pescoço) não aceitar a execução até o último instante. Os gaúchos possuem um ditado popular um pouco tosco, mas bem apropriado… “não tá morto quem peleia…!”. A própria luta para escapar do ordinário já torna a vida menos ordinária (o filme de Boyle insinua isso).

Há também que se lembrar… nem sempre o “ordinário” é “insuportável”. Para muitos, senão todos em alguma fase da vida, andar sobre os trilhos tem seu apelo confortante e evoca a palavra “rotina” em um sentido prazeroso, tal qual não consta sempre no dicionário da metafísica moderna (permeada de auto-ajuda viciosa…). Bom, na salada de filosofia, literatura, senso comum e cinema que já fiz neste post, acrescento como toque final a letra de “Ordinary World” do Duran Duran (ah, os anos 80…)

But I won’t cry for yesterday
there’s an ordinary world
Somehow I have to find
and as I try to make my way
to the ordinary world
I will learn to survive

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4 respostas para Thoreau, Lispector, Boyle… por vidas menos ordinárias

  1. Greize disse:

    Vi o ator Lima Duarte numa novela dizendo essa frase: “não tá morto quem peleia…!”.Parece tosca, sim, mas também mostra força que os gaúchos tem.É muito estranho as visões que temos dos outros estados, dentro do nosso próprio país.Estudamos mais a história dos outros países, do que a nossa própria pátria.
    Abraços

  2. NADIA CRUZ disse:

    Arlei !
    Como sempre, um texto rico de muitas idéias…
    Acho que na vida, nada pode ser tudo, e tudo pode ser nada…rs
    Meio louco isso, mas é por aí…
    A rotina pode dar “segurança”, “tranqüilidade” e a pessoa ser feliz com uma vidinha meio morna, mas equilibrada e amena.
    Em outros casos, conseguir o sucesso pode ser altamente frustrante, e surgir, até, síndrome do pânico.
    Vivemos no mistério…
    Cabe a cada um de nós, descobrir novas portas, ou continuar nos mesmos quartos, e com portas fechadas.
    Gostei muito da frase: às vezes é preciso dar um chute na porta da vida para encontrar a saída.
    Meu lema de vida é um pouco assim. Já dei muitos chutes para encontrar a saída, e nunca me arrependi…
    Abração!!
    Nádia

  3. Camila Carla disse:

    Fico admirada quando leio seus textos…
    Você tenha uma grande facilidade em lhe dar com as palavras, mostra serenidade, perfeição, naturalidade… isso só vem a mostrar que num mundo cheio de abusos, ainda podemos encontrar pessoas íntegras, cultas …isso é de grande importância!!!
    Em relação a frase ao qual citou sobre; às vezes é preciso dar um chute na porta da vida para encontrar a saída… concordo com isso, muitas vezes desperdiçamos oportunidades únicas, por medo, ou muitas vezes falta de amor a si próprio.
    Desde então temos q vivenciar, buscar saídas para nossos medos…
    Aqui mais uma vez meus parabéns e, q você venha a continuar a nos presentear com belos textos.!

  4. jusseli maria rocha disse:

    Thoreau …o inspirador de Gandhi e Martim Luther King em suas lutas pacíficas. Gostei maisainda do teu blog. Abraços.

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