Uma manhã

 

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Ele disse, assim tão repentina e descabidamente, como quem diz ”acho que vai chover”..:

Meu amor, como você é linda!

Ela não girou a cabeça, ocupada como estava em ajustar a altura exata do cinto (nem muito acima da cintura para não acentuar demais os seios, nem muito abaixo para insinuar que havia um pouco a mais de quadris do que gostaria); não sorriu ou agradeceu, limitou-se a ponderar:

Linda… não sei como… é pura ruga no rosto, é este corpo de baleia…e as olheiras…

Nas primeiras vezes, ele ficava frustrado. A toda veneração, ouvia uma contraposição. Pensara em não falar mais nada. Depois… ora, depois. Duas criaturas que passam a viver juntas desenvolvem uma antropologia única, e ele descobriu com deleite de aprendiz que quando o ”depois” foi se insinuando na relação, passou a não aborrecer-se com a aparente rejeição que ela manifestava ao seu eterno deslumbramento. Ou, dito de outra forma, resolveu adotar aquele deslumbramento órfão de mãe. Ele era seu, prescindia da aprovação dela.

Elogiava aquela mulher quando bem entendesse. Beijava sem esperar convite, dizia ”eu te amo” em expectativa surda para a presença ou ausência de uma resposta. Não aguardava momento para apontar suas qualidades, ou expressar sua admiração. Aquela veneração era, em verdade, sua. Era a expressão de algo que, por expansiva ou sufocante, era maior do que cabia em seu coração. Precisa ser dita, manifesta, escancarada. Assim vivia mais feliz. No entanto, por mais que não se angustiasse com isso, em verdade não sabia o que a mulher sentia.

Ela poderia tolerar, com sincera indiferença… afinal, tantas outras toleravam coisas piores e seguiam relações sem nem saber o porquê… toleravam traições e espancamentos… então, tolerar elogios e excessos de zelo seria até menos penoso. Poderia, também, apenas suportar… sim, pois o mel em excesso não há de fartar e enjoar? Poderia suportar com desagrado, com a angústia de quem não sabe até quando será capaz, torcendo sempre para que não se repetisse.

Poderia desgostar, tomando por falsidades de método… pensar que o homem fosse de uma incorrigível e automática tendência à corte, à sedução vazia, e assim duvidar da sinceridade de cada um daqueles gestos. Poderia também sentir exatamente o que manifestava, uma íncuba e tenaz ojeriza a si mesmo, tal que nem mesmo a constância da admiração alheia pudesse reverter (e assim fosse para todo o sempre)…

Ou ainda, poderia, no íntimo apreciar… seja com aqueles resquícios infantis de timidez que não permitiam ceder à honestidade dos elogios, ou com a mera firmeza de propósito que lhe pedia para, mesmo lisonjeada ao extremo, demonstrar jamais! Pode ser que, embora não reagisse, não fosse capaz de suportar um único dia sem um elogio, um beijo, um carinho inesperado daquele homem…

… fosse como fosse, representava sempre o mesmo papel.

Mas naquele dia ele levantou-se da cama, afastando os lençóis sem muito cuidado. Talvez como quem segue seu modo de pensar, talvez como quem resolve deixá-lo mais claro, tomou-lhe a cintura onde recém se encaixara o cinto, e enlaçando a mulher por trás, beijou com delicadeza cada ruga que encontrou em seu rosto. Ela, de modo igualmente insondável, permitiu a ternura em silêncio. Ele sorriu, mostrando suas próprias rugas, e disse:

Vai chover à tarde… e eu te acho mais linda hoje que quando você tinha quinze anos.

Ela sorriu enigmaticamente. Poderia ser isso… poderia ser aquilo… mas, de qualquer modo, devolveu-lhe um beijo suave. E, no fundo, ele mesmo sabia que ”poderia” ser muita coisa. Mas não importava mais. O que quer que houvesse, aquele jogo era de uma compatibilidade quase mística. Era paz, era a paz que haveria nas gotas de chuva quando ela chegasse ao final da tarde à procura de seu ombro.

E, fosse lá pelo que fosse, ele estaria lá.

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2 respostas para Uma manhã

  1. Cristina disse:

    Menino, que lindo conto.
    Até hoje sonho em viver um amor assim 🙂 apesar dos meus anos, sonhar não custa nada rsrs
    Amo qdo recebo em meu e-mail, msg do teu blog ; corro para cá rsrs
    Você é um homem especial, se destaca dos demais. Parabéns!!
    Beijinhos

  2. Luciane disse:

    Que linda história!..como tantas outras escritas aqui… Aguardo por uma publicação sua! Tens muito talento!

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