Deu-se a história com um aprendiz de boticário, uma dama de roupas largas e uma janela no segundo andar de um sobrado da rua das Mercês. Quanto ao tempo em que sucedeu, quem o sabe ao certo? Afinal, nas imutáveis pedras da rua das Mercês confundem-se os dias antigos e os atuais. Todavia, terá sido há muito, muito, muito tempo.
O aprendiz era um moço de quase vinte anos – destes, muito poucos plenamente vividos e outros tantos plenamente desperdiçados. Se não era especialmente feio, tampouco mostrava o vigor e a energia que emprestam a homens menos graciosos algum atrativo. Na verdade, por timidez ou ausência de ânimo tornava-se quase incolor como os veículos de essências que manipulava. Sua existência também fora transparente, pois mal tinha um passado, entediava-se com o presente e pouco esperava do futuro (talvez o casamento com a prima ossuda que herdara as casas de aluguel do tio; talvez assumir as encomendas da Pharmacia quando o velho Altamirando trocasse o pinho do balcão pelo do ataúde; talvez sentar praça no Regimento de Cavalaria e assim correr o mundo…). Nada lhe era menos indiferente, nada parecia tão interessante a ponto de sequer causar espécie. O jovem farmacêutico de cabelos espessos era um reles borrão no intrincado manuscrito da cidade.
Quanto à Rua das Mercês, essa era o principal itinerário das mulheres que desejavam ser vistas, na sutil ou desavergonhada exposição de seus melhores vestidos e chapéus. Nas Mercês as moças desfilavam faces impositivamente sorridentes, mostrando uma ou outra polegada a mais de pele abaixo do pescoço (as mais ousadas insinuavam a curva de seus bustos e desnudavam o regaço dos seios). Era uma rua curta e mal calçada, mas naquele tempo os sobrados baixos que a margeavam pulsavam como o coração da cidade. E num destes sobrados estava instalada a Pharmacia Miracculosa, ou (como o povo lhe chamava) a Botica do Altamirando, sempre aberta até que o primeiro lampião fosse aceso nas Mercês.
Aquele aprendiz solitário passava o dia no segundo andar do sobrado, espécie de laboratório e depósito de exíguos metros, onde o seu velho mestre boticário menos se dedicava a lhe ensinar as artes do ofício que tirar proveito de suas mãos e olhos juvenis para manipular as encomendas. Mas, por mais que parecesse, não era um acordo tão injusto: o aprendiz gostava daquele isolamento, gostava sobretudo da janela que lhe coubera naquele quarto que cheirava a álcool. Afinal, ter qualquer janela que desse para a Rua das Mercês era (com o perdão do chiste) uma bênção. A maior parte dos jovens aprendizes de ofício passava os dias em sufocantes oficinas mal ventiladas nos fundos dos estabelecimentos dos mestres. E a botica do dr. Altamirando (Pharmacia, meu filho! Botica, nunca, jamais! Pharmacia!) ficava num sobrado muito estreito mas ensolarado, quase ao final da Rua das Mercês e a poucas dezenas de metros da Igreja do Rosário.
Nesta localização, tinha a seu dispor uma janela cujo alcance visual abrangia toda a Rua, e assim podia acompanhar o interessante cortejo humano sempre que os olhos esbugalhados do dr. Altamirando não estivessem lhe vigiando, ou a faina de proporcionar xaropes e unguentos não lhe tomasse demasiado a atenção. Sobretudo, jovem e hormonal como era sob a máscara de parvo, avaliava e cobiçava as mulheres da rua das Mercês. Entre estas, naturalmente as dotadas de grande formosura e ousadia eram as que mais lhe atraíam a atenção. Contudo, há várias semanas, somente uma – e das menos ousadas – passara a apreender incondicionalmente o seu olhar.
Daquela minúscula janela, o aprendiz de boticário via a moça quase todos os dias.
Não devia ser filha de algum burguês abastado. Também não se assemelhava a criada ou desfavorecida. Seus vestidos eram sempre altos e de mangas longas; jamais poderia ser confundida com as atrevidas que desnudavam braços, colos e bustos pela passarela das Mercês. Não obstante a incomum extensão das roupas, vestia-se sem exageros, sem muitos artifícios ou complementos; mas jamais repetia as vestes e nem mesmo o andar.
O andar, sim! Pois as damas das Mercês eram reconhecíveis pelo andar. Tal como atrizes de uma peça já conhecida e enfadonha, cada uma representava papel único e imutável. Algumas (principalmente as mais jovens e coquetes) caminhavam a passos rápidos e curtos, cabeça sempre em movimento para nada perder das vizinhanças. Outras, já alçadas por um ansiado casamento ao comando de seus próprios lares, executavam uma marcha firme, olhar sempre em frente sobre o pescoço engomado. Outras ainda (talvez angustiadas por terem perdido a juventude da primeira categoria sem atingir a segurança da segunda) arrastavam se em um passo dolorido e desajeitado, olhos baixos e gestos nervosos. De fato, bastava acompanhar-lhes meia dúzia de passos para catalogá-las a contento. Mas aquela era diferente.
Seu andar era imprevisível. Ora apressado, ora incerto como quem caminha sem saber para onde. Não tinha rosto tão moreno que não temesse o sol do meio dia, mas nem tão pálido que necessitasse do auxílio frívolo de guarda-sóis. Vez ou outra cumprimentava algum passante, mas nunca (ao contrário de quase todas as mulheres das Mercês) detinha-se em conversas cheias de sorrisos e meneios ensaiados de cabeça. Nunca se sabia quando viria, não tinha horários de passeio ou itinerário certo. Passava às vezes dias sem ser vista da janela da botica, e em outros subia e descia repetidamente em passo firme pelas pedras mal calçadas.
O que mais fascinava o jovem farmacêutico era a onipresença de sua boca, boca graúda, quase indecente a contrastar com o afilamento europeu dos olhos e do nariz. E ainda que sorrisse pouco, aquela boca subjugava todo o rosto, que apesar de largo e curvilíneo era pequeno para a fartura sensual daqueles lábios. Uma ou duas vezes, viu de frente o seu olhar amiudado, sem descobrir a cor exata da íris sob as pálpebras semicerradas. Não sabia se ela o havia visto, ou voltara o rosto para cima por mera casualidade, pois o certo é que aquele olhar nele nunca se deteve. Era um olhar de inquietação, sempre procurando algo que não se sabia bem ao certo o que era… embora, claramente, não devesse ser um aprendiz de boticário.
… mas então calhou de acontecer aquela tarde.
Tarde na qual, como tantas outras, a rapariga surgiu a um canto da janela. Mas não completou a trajetória até o outro extremo. Desviara o caminho. Acelerou-se o pulso do aprendiz, ao perceber que a Bela das Mercês estava a entrar na Botica, pela primeira vez desde que a notara através da janela.
Sobressaltado, saltou para o pequeno corredor, de modo a ter um contato visual com o vão da escada e com a entrada do sobrado no andar abaixo. Encolhido contra a parede, vislumbrou-a entrando pela porta. Imaginava aquela boca a poucos metros, sentia um perfume cálido a volatilizar-se de sua pele, e ouvia pela primeira vez sua voz grave e determinada:
Boa tarde. Necessito óleo de calêndulas; tão fresco quanto possível.
A esse pedido imperioso, seguiu-se a voz abafada e inaudível do velho Altamirando resmungando alguma coisa. Uma sacudida de cabeça precedeu a réplica da rapariga:
Não. Com brevidade. Nem pomadas nem essências; óleo recentemente preparado.
Óleo de calêndula. Era um pedido incomum. A que se destinaria? Provavelmente o velho também fizera a mesma pergunta, pois ouviu a moça a responder-lhe:
Tenho necessidade, é o que basta.
E então ela inesperadamente levantou o olhar, interceptando o do aprendiz. O choque durou um segundo exato, após o qual ele recolheu o corpo, intimidado por ter sido descoberto nessa curiosidade infantil. Confuso, esgueirou-se de volta a seu cubículo. Não teve coragem de espiar novamente à janela, mas ouviu-lhe os passos a abandonar o sobrado e descer novamente a rua das Mercês. Poucos minutos depois, o arrastar das chinelas do velho boticário subia as escadas. Disfarçadamente, baixou os olhos para um frasco em que gotejava terebintina, erguendo-os somente quando dr. Altamirando dirigiu-lhe a voz:
Óleo de Calêndulas. Com brevidade. Hmmm…. temos calêndula?
Fingindo surpresa, o aprendiz levantou-se com expressão grave e consultou a cestaria de pétalas secas ao canto:
Um pouco… já emaciadas e sem cor.
O velho tossiu. Coçou a calva e resmungou para si mesmo, assentindo com a cabeça. Pareceu ter decidido algo, mas não dignou-se a comunicar ao jovem. Olhando por sobre os óculos, buscou alguma coisa na prateleira de velhos frascos cor de caramelo, embrutecidos pela poeira. Com gestos inseguros, separou um deles e colocou ruidosamente à frente do moço, dizendo:
Assim hão de melhorar a aparência. Dissolva e prepare uma galoneta de óleo bem cheia, para amanhã à tarde.
Obedientemente, ele concordou em silêncio, ao que o velho virou-lhe as costas e desceu novamente. Com um carinho incomum, o aprendiz macerou as pétalas, embebendo-as na solução e enfim proporcionando óleo de girassol, obtendo um líquido cristalino e amarelado que deixaria descansar por toda a noite. Noite que passaria insone, a pensar na moça e nas calêndulas. Nas calêndulas… e na moça, que em seu delírio tinha um cheiro de calêndula, e uma pele branco amarelada da cor das calêndulas… a pele indevassável sob a gola aérea dos vestidos, em sua excitação de apaixonado, tornava-se tátil como as flores murchas do boticário.
Adentrou o laboratório, manhã seguinte, como quem adentra a maternidade em busca do primeiro recém-nascido. Encontrou o preparado bem consistente, uniforme e exalando um odor límpido. Como previra o velho boticário, realmente aparentava ter sido feito de flores frescas e viçosas. Com as mãos inseguras, depositou o conteúdo em outro frasco, cujo exterior limpou meticulosamente, rotulando-o em seguida e identificando com a melhor letra que pôde: ÓLEO DE CALÊNDULA.
Teve a ousadia de descer, carregando o vidro precioso, em busca do mestre que cochilava em pé atrás do balcão. Altamirando percebeu-lhe a presença, mas mal girou a cabeça de condor. Não pronunciou palavra, olhando apenas intrigado para o frasco rotulado que o jovem tinha em mãos. Inspirando profundamente, disse o aprendiz:
Está feito. Não é necessário aguardar a tarde. Penso ter entendido que era caso de brevidade… poderia entregá-lo eu mesmo, ainda esta manhã.
…esta manhã…
Nada mais há para preparar, e uma caminhada é sempre bem vinda.
Altamirando encarou-o, agora totalmente desperto, intrigado com a boa vontade e a energia incomuns do aprendiz. Súbito, contraiu as pálpebras num movimento indecifrável. Talvez houvesse compreendido a intenção do rapaz e com ela fosse cúmplice, talvez apenas manifestasse uma indiferença atroz à pretensão… fato é que em dois segundos descontraiu a face, dizendo:
Se lhe aprouver… já foi pago…
Qual o endereço, dr. Altamirando?
Devagar, e sem emitir um som sequer, o velho abaixou-se para consultar a caderneta sebosa que tinha à sua frente. Sem emoção, recitou rua e número… e aquela simples combinação de dados pareceu um poema muito doce aos ouvidos do aprendiz.
Servidão de Santo Amaro, número 4.
Flutuando como ébrio, ele percorreu as Mercês sem ver coisa alguma ao seu redor. Transpôs as elevadas do Rosário, e começou a descer as vielas de terra nua que delimitavam a extensão habitada da cidade. As casas ali eram mais espraiadas, dotadas de amplos quintais e cercanias pouco nítidas. Um caixeiro solitário auxiliou o esbaforido aprendiz a localizar seu destino, uma rua envolta na sombra de uma grande figueira e margeada por toiceiras altas. Apenas quatro edificações lhe cabiam, duas a cada lado: a que buscava era a última, lindeira a um pequeno matagal. Era uma casa simples, de pintura desbotada e madeirame envelhecido, mas seu quintal era o mais limpo de toda a rua. À bem da verdade, as demais pareciam praticamente abandonadas.
Deslizando sobre uma estreita calçada de pedregulhos, bateu à porta, cada batida ecoando os golpes de seu próprio coração. A portinhola superior abriu-se, deixando entrever o rosto tão conhecido. Ainda que entregue à pouca nitidez das sombras, o rosto da moça lhe era fascinante. Respondeu-lhe agitado ao grave e profundo ”pois não” que partiu daquela boca:
O óleo… óleo de calêndulas da Botica.
A bela não disfarçou o espanto:
Não o esperava tão cedo… mas é tanto melhor…
Abriu pela metade a porta, suficiente para que estendesse o braço coberto por mangas profusas e para permitir uma breve visão do interior. Quase que imediatamente, o olhar do aprendiz foi atraído por um quadro à parede: um retrato retocado a tinta, que representava claramente a bela das Mercês, ainda mais jovem e bela… e um homem atarracado, de amplas costeletas, a margeá-la com um ar possessivo. Era um retrato matrimonial. Confuso, o jovem desviou o olhar para as mãos pálidas da moça, e nelas não encontrou qualquer anel. Sem embaraço, ela tomou o frasco de suas mãos. Ergueu o rosto. Desta vez o aprendiz, mesmo preso da vontade de fazê-lo, não desviou o olhar. Se ela percebeu algo, não demonstrou. Formalmente, agradeceu ao moço, desejando que passasse bem… e com um passo para trás, vagarosamente fechou a porta.
O aprendiz voltou-se, e o arrastar de seus pés fez gemer os pedregulhos. Estava confuso, e nesse torpor caminhou até a rua. Mas então algo o fez parar. Na servidão deserta, voltou–se e ficou contemplando as paredes e seus mistérios. Sem sequer ponderar porque o fazia, caminhou pelo relvado até a lateral da casa. O fascínio era por demais pungente para ceder à razão. Sorrateiramente, desvendou a arquitetura daquela habitação, suas janelas e postigos. Ouviu um ressoar aos fundos da casa, um retinir de alouçados. Cauteloso, esgueirou-se para o nicho formado entre duas paredes quase contíguas, e descobriu uma pequena janela semiaberta, a única entrada de luz para um quarto de banhos!
A janela, contudo, era alta. Afoito, o rapaz encontrou um grande vaso de barro abandonado a um canto do jardim. Com grande esforço, por conta do peso e necessidade de evitar ao máximo algum ruído, encostou o vaso à parede. Então subiu, ganhando visão através da janela.
O peito subia e descia rápido, uma enxurrada a percorrer seu coração. Ali estava a moça, junto a uma grande banheira. Abastecia o quarto com várias toalhas e delicados lenços, num ritual hipnótico. Súbito, parou o que fazia e emitiu um longo suspiro. Delicada e metodicamente, soltou a saia, que desceu por sobre as anáguas e caiu graciosamente ao chão. Então, mãos para trás, começou a desprender a blusa. O aprendiz sentiu o coração bater tão forte, em golpes que lhe sacudiam a cabeça, que imaginou não resistir. Poderia desfalecer a qualquer momento. Em poucos segundos, a moça concluiu a tarefa e baixou os braços, deixando cair a blusa praticamente ao mesmo tempo em que também despia, de um só movimento, a anágua.
E soergueu-se, revelando a pele cuja visão tanto desejara aquele moço.
Este quase não pôde evitar um murmúrio de assombro. Aquela pele escondida sob as roupas da Bela das Mercês era um emaranhado de sulcos e vincos, gretas de pele amontoadas desajeitadamente, em tons de vermelho vivo ou rosáceo. As pernas, os quadris, o ventre… tudo estava grotescamente deformado, vincado, feito terra recém e displicentemente arada. Os espaços entre os vales de pele queratinizada pareciam quase úmidos e pulsáteis, e era possível intuir o quanto eram dolorosos ao toque.
Eram evidentes sequelas de graves, gravíssimas queimaduras mal cicatrizadas.
E no entanto, mesmo sob aquele manto de deformidade, percebeu o quanto era gracioso, quanto era bem proporcionado aquele corpo. E aquela elegância, aquele andar seguro com que percorria as Mercês… quanta dor suportaria a cada passo! Uma mistura de desejo e piedade lhe tocou tão penosamente que não sabia onde começava um sentimento e onde acabava o outro. Seu amor transpôs os limites da experiência juvenil, de sua própria existência tão breve. Fascinado, não piscava. Agora nua, a Bela adentrou com graça a banheira, agachando-se com cuidado em seu interior, os seios firmes a apontar em sua direção. Ele, que outros não conhecia, soube contudo que eram lindos, apesar das inúmeras marcas… como as curvas convergentes que lhe encimavam as coxas, naquela nudez que a deformidade tornara mais profana… e talvez por isso mais erótica, mais inebriante.
Bem lentamente, a moça começou a embeber o corpo no óleo que ele lhe preparara. Deixara derramar um pouco a partir dos ombros, e o líquido viscoso fluía pelas vertentes que as quelóides formavam em sua pele. Outro tanto umedecia os lenços que ela cautelosamente deslizava pelos braços, ventre, pernas, fechando os olhos numa indecifrável sensação, prazer, dor ou alívio.
Era a dança mais bela que ele já vira na vida. Nunca desejara tanto uma mulher como desejava, naquele momento, a Bela das Mercês, a bela da nudez desfigurada que bailava em êxtase ao alcance de seus olhos. Era como embriagar-se. Ele a quis… seus dedos vacilantes, sem que ele percebesse, desenhavam no ar o percurso que ansiavam por fazer naquela pele marcada.
Deixou escapar um breve e fluido gemido. Foi quase nada, um sopro. Mas ela o ouviu. Não sobressaltou-se, apenas deteve o balé do óleo de calêndulas e voltou o olhar para a janela. Mais uma vez, os pares de olhos encontravam-se. E como das outras vezes, ela não recuou. Por alguns segundos, aquele olhar queimou tanto o aprendiz quanto o fogo lhe havia queimado a pele. Sôfrego, o admirador surpreendido tentou afastar-se da janela… mas, esquecendo o quanto estava mal sustentado, perdeu o equilíbrio sobre o vaso e caiu ao chão, esmigalhando a peça de barro cozido com o corpo.
A dor lhe assaltou de imediato, das costas, braços e pernas. Além do impacto com o solo, fragmentos pontiagudos do vaso estilhaçado penetraram-lhe a pele. Intuiu, mais que viu, que sangrava. As mãos buscavam apoio, mas neste gesto ainda mais se feriam, firmando-se como estavam sobre outros restos cortantes do vaso. Permaneceu alguns segundos estatelado, a respirar com dificuldade. Dolorosamente, conseguiu pôr-se de joelhos… e então uma sombra o encobriu.
Erguendo os olhos, novamente teve as pupilas presas pelo olhar da moça das Mercês. Estava debruçada sobre ele. Mal envolta em um largo atoalhado, com aquela nudez escaldada a sobressair entre as frestas do tecido, ela viera pela porta dos fundos a seu encontro… e havia um evidente quê de cuidado em sua atitude. Percebendo que um corte no braço do aprendiz sangrava furiosamente, tomou o lenço que trazia ainda embebido em óleo de calêndula, e aplicou imediatamente sobre o corte, provocando uma ardência inesperada. Amarrou de modo grosseiro as extremidades, estancando o sangramento. Estendeu-lhe a mão, que ele aceitou sem questionar, e ajudou o jovem a pôr-se em pé. Ainda sem dizer palavra, girou para trás do jovem boticário, tocou levemente o rapaz nos ombros, e voltando-o para os fundos da casa, conduziu-o na direção da porta.
Ele agora esboçava alguma reação, uma pequena resistência, incerto que ainda estava entre a excitação e a culpa. Mas ela o conduziu firmemente, porta adentro, até a sala de banho. Enfim, o rapaz conseguiu balbuciar:
Perdão… não tencionava…
Ela não perdoou com qualquer palavra. O cuidado impositivo falava por si. Com cuidado, ajudou o aturdido moço a despir a camisa ensanguentada, para avaliar a gravidade dos ferimentos. O fez deitar ao chão, sobre as toalhas que estendera. Ajoelhou-se ao seu lado, e limpou cuidadosamente cada corte e arranhão. Ele a admirava, estupefato. Os seios pendiam rijos, mostravam-se através da camada atoalhada que cobria o corpo da bela, e sem pensar no que fazia, estendeu a mão para tocá-los.
Ela não impediu o gesto, mas tampouco o encorajou. Permitiu, apenas isso. Ele sentiu a firmeza e o calor de seu corpo, muito mais que a aspereza da pele calcinada que o cobria. Após esse breve mas intenso toque, ele recolheu num átimo a mão, o antebraço enfaixado com o lenço dela. Quis falar, falar muito, falar como um anjo… mas tudo o que pôde dizer foi:
És doce… tu és linda…
Inesperadamente, a bela sorriu… não um sorriso aberto de moça ingênua que já não era, mas um sorriso que guardava um pouco de amargura. Ainda assim era um sorriso belo, porque pertencia àquele rosto tão amado. A moça olhou com ternura para o jovem desajeitado e ferido a seus pés, e de súbito inclinou o rosto, tocando-lhe a fronte com os lábios num beijo úmido e tranquilo, que estendeu-se numa mansa eternidade.
Depois, apenas os olhos se tocaram. Dir-se-ia uma conversa ocular, oftalmológica, mas firme e intensa. O amor atabalhoado e juvenil daquele rapazola era tão perceptível que comoveu a rapariga. Ela percebeu que o bigode que ameaçava crescer no seu rosto acabaria por lhe dar uma dignidade hoje ausente, e de certo modo essa dignidade o tornaria belo. Ele, por sua vez, entendeu quão moço era, e desejou que ela soubesse, desejou desesperadamente que ela entendesse como lhe amava… novamente, quis expressar esse sentimento em palavras, mas não as conhecia. Tudo o que disse, tomado de apreensão, foi:
Teu marido… és casada…
Ela balançou pesadamente a cabeça, em negativa. Suspirou, como que ponderando o limite das confidências, e num tom dúbio respondeu:
Meu jardim é grande… a terra é macia… sempre foi fácil cavar. Um homem pequeno não ocupa muito espaço. Está dentro da terra… e as flores nasceram tão belas, depois…
Ele compreendeu, e o seu maior choque foi não sentir choque algum. Com a mão hesitante, tocou uma vez mais a bela, no ventre deformado pelas queimaduras, e perguntou:
Mas… então… foi ele…?
Ela confirmou em um mudo inclinar de cabeça. Então as palavras represadas irromperaram em pequenos borbotões:
Óleo de calêndulas, foi o que ele disse… que eu me conformasse de estar viva e passasse óleo de calêndulas. Sabe, aquele vestido em que ele prendeu fogo era de gaze… a chama subiu rápido demais. Ele riu. Riu. É que sempre havia dito que minha indecência arderia no inferno. Riu. Tinha agora um troféu… comprou todas as casas abandonadas da servidão, e guardou-me bem ao fundo. Era uma perversidade fria, quase amorosa… ele ria. Mas quem ri também dorme, um dia. E agora jamais acordará… cuidei disso… ora, mas ele disse, calêndulas sempre ajudam. Pois bem, agora eu cuido do jardim, da terra que eu cavei, e uso óleo de calêndulas.
Num suspiro, a bela ergueu-se, desvelando de vez sua nudez sob o atoalhado. Mas não parecia preocupada. Nem com seus pudores, nem com a compreensão súbita que cobria os olhos do aprendiz. Como se aquilo fosse inexorável, intrínseco à manhã que se acabava e, de outro modo, à todas as manhãs que se seguiriam, o acontecido em nada a perturbava, exceto por aquele afeto inesperado por seu admirador secreto.
O rapaz, por sua vez, agora era um homem. Levantando-se, pôs-se em pé ao seu lado, e tentou novamente tocar aquele corpo, mas desta vez ela sutilmente evitou o contato. Um pouco constrangido, vestiu a camisa outra vez. Com a mesma voz firme e impositiva, ela disse apenas:
É preciso que vás agora.
Ele concordou, pois nada havia a discordar. O sangue estancara do antebraço, e fez menção de remover a atadura improvisada. Ela o deteve impondo as mãos, e seus olhos silenciosamente o presentearam com aquele lenço. Do mesmo modo que o trouxera, o conduziu à porta de entrada. Assim que o aprendiz saiu, ela fechou mansamente a porta.
… e …
Não menos de uma semana depois, ele a viu novamente. Cruzava a rua das Mercês, como sempre. Roupas altas, mangas que tudo cobriam, em flagrante descompasso com as damas que desfilavam vislumbres de pele pelas pedras mal arranjadas das Mercês. Mas desta vez, ela olhou para a janela do boticário, o mesmo olhar que não recuava. E por um ou dois minutos (o tempo de percorrer o espaço entre um e outro caixilho da janela) ele também não desviou o olhar. Nesse encontro das retinas, nesse amor feito com os olhos, tomaram uma decisão.
Dois dias depois, desapareceu. Houve quem dissesse tê-lo visto, procurando um caminho que levasse ao mar. Outros constataram apenas que não mais retornou à Botica, e em pouco tempo sua ausência foi esquecida. Certo é que sumiu… em estranha coincidência, também desapareceu a moça de roupas compridas que aparecia na janela da rua das Mercês, e pouco a pouco aquela casa (e toda a servidão de Santo Amaro) foi engolfada pelo matagal. Nunca mais houve algum pedido de óleo de calêndulas na Pharmacia Miracculosa, e o sobrado foi vendido pelo genro do velho Altamirando após sua morte.