A Bela das Mercês

 Deu-se a história com um aprendiz de boticário,  uma dama de roupas largas e uma janela no segundo andar de um sobrado da rua das Mercês. Quanto ao tempo em que sucedeu, quem o sabe ao certo? Afinal, nas imutáveis pedras da rua das Mercês confundem-se os dias antigos e os atuais. Todavia, terá sido há muito, muito, muito tempo.

O aprendiz era um moço de quase vinte anos – destes, muito poucos plenamente vividos e outros tantos plenamente desperdiçados. Se não era especialmente feio, tampouco mostrava o vigor e a energia que emprestam a homens menos graciosos algum atrativo. Na verdade, por timidez ou ausência de ânimo tornava-se quase incolor como os veículos de essências que manipulava. Sua existência também fora transparente, pois mal tinha um passado, entediava-se com o presente e pouco esperava do futuro (talvez o casamento com a prima ossuda que herdara as casas de aluguel do tio; talvez assumir as encomendas da Pharmacia quando o velho Altamirando trocasse o pinho do balcão pelo do ataúde; talvez sentar praça no Regimento de Cavalaria e assim correr o mundo…). Nada lhe era menos indiferente, nada parecia tão interessante a ponto de sequer causar espécie. O jovem farmacêutico de cabelos espessos era um reles borrão no intrincado manuscrito da cidade.

Quanto à Rua das Mercês, essa era o principal itinerário das mulheres que desejavam ser vistas, na sutil ou desavergonhada exposição de seus melhores vestidos e chapéus. Nas Mercês as moças desfilavam faces impositivamente sorridentes, mostrando uma ou outra polegada a mais de pele abaixo do pescoço (as mais ousadas insinuavam a curva de seus bustos e desnudavam o regaço dos seios). Era uma rua curta e mal calçada, mas naquele tempo os sobrados baixos que a margeavam pulsavam como o coração da cidade. E num destes sobrados estava instalada a Pharmacia Miracculosa, ou (como o povo lhe chamava) a Botica do Altamirando, sempre aberta até que o primeiro lampião fosse aceso nas Mercês.

Aquele aprendiz solitário passava o dia no segundo andar do sobrado, espécie de laboratório e depósito de exíguos metros, onde o seu velho mestre boticário menos se dedicava a lhe ensinar as artes do ofício que tirar proveito de suas mãos e olhos juvenis para manipular as encomendas. Mas, por mais que parecesse, não era um acordo tão injusto: o aprendiz gostava daquele isolamento, gostava sobretudo da janela que lhe coubera naquele quarto que cheirava a álcool. Afinal, ter qualquer janela que desse para a Rua das Mercês era (com o perdão do chiste) uma bênção. A maior parte dos jovens aprendizes de ofício passava os dias em sufocantes oficinas mal ventiladas nos fundos dos estabelecimentos dos mestres. E a botica do dr. Altamirando (Pharmacia, meu filho! Botica, nunca, jamais! Pharmacia!) ficava num sobrado muito estreito mas ensolarado, quase ao final da Rua das Mercês e a poucas dezenas de metros da Igreja do Rosário.

Nesta localização, tinha a seu dispor uma janela cujo alcance visual abrangia toda a Rua, e assim podia acompanhar o interessante cortejo humano sempre que os olhos esbugalhados do dr. Altamirando não estivessem lhe vigiando, ou a faina de proporcionar xaropes e unguentos não lhe tomasse demasiado a atenção. Sobretudo, jovem e hormonal como era sob a máscara de parvo, avaliava e cobiçava as mulheres da rua das Mercês. Entre estas, naturalmente as dotadas de grande formosura e ousadia eram as que mais lhe atraíam a atenção. Contudo, há várias semanas, somente uma – e das menos ousadas – passara a apreender incondicionalmente o seu olhar.

Daquela minúscula janela, o aprendiz de boticário via a moça quase todos os dias.

Não devia ser filha de algum burguês abastado. Também não se assemelhava a criada ou desfavorecida. Seus vestidos eram sempre altos e de mangas longas; jamais poderia ser confundida com as atrevidas que desnudavam braços, colos e bustos pela passarela das Mercês. Não obstante a incomum extensão das roupas, vestia-se sem exageros, sem muitos artifícios ou complementos; mas jamais repetia as vestes e nem mesmo o andar.

O andar, sim! Pois as damas das Mercês eram reconhecíveis pelo andar. Tal como atrizes de uma peça já conhecida e enfadonha, cada uma representava papel único e imutável. Algumas (principalmente as mais jovens e coquetes) caminhavam a passos rápidos e curtos, cabeça sempre em movimento para nada perder das vizinhanças. Outras, já alçadas por um ansiado casamento ao comando de seus próprios lares, executavam uma marcha firme, olhar sempre em frente sobre o pescoço engomado. Outras ainda (talvez angustiadas por terem perdido a juventude da primeira categoria sem atingir a segurança da segunda) arrastavam se em um passo dolorido e desajeitado, olhos baixos e gestos nervosos. De fato, bastava acompanhar-lhes meia dúzia de passos para catalogá-las a contento. Mas aquela era diferente.

Seu andar era imprevisível. Ora apressado, ora incerto como quem caminha sem saber para onde. Não tinha rosto tão moreno que não temesse o sol do meio dia, mas nem tão pálido que necessitasse do auxílio frívolo de guarda-sóis. Vez ou outra cumprimentava algum passante, mas nunca (ao contrário de quase todas as mulheres das Mercês) detinha-se em conversas cheias de sorrisos e meneios ensaiados de cabeça. Nunca se sabia quando viria, não tinha horários de passeio ou itinerário certo. Passava às vezes dias sem ser vista da janela da botica, e em outros subia e descia repetidamente em passo firme pelas pedras mal calçadas.

O que mais fascinava o jovem farmacêutico era a onipresença de sua boca, boca graúda, quase indecente a contrastar com o afilamento europeu dos olhos e do nariz. E ainda que sorrisse pouco, aquela boca subjugava todo o rosto, que apesar de largo e curvilíneo era pequeno para a fartura sensual daqueles lábios. Uma ou duas vezes, viu de frente o seu olhar amiudado, sem descobrir a cor exata da íris sob as pálpebras semicerradas. Não sabia se ela o havia visto, ou voltara o rosto para cima por mera casualidade, pois o certo é que aquele olhar nele nunca se deteve. Era um olhar de inquietação, sempre procurando algo que não se sabia bem ao certo o que era… embora, claramente, não devesse ser um aprendiz de boticário.

… mas então calhou de acontecer aquela tarde.

Tarde na qual, como tantas outras, a rapariga surgiu a um canto da janela. Mas não completou a trajetória até o outro extremo. Desviara o caminho. Acelerou-se o pulso do aprendiz, ao perceber que a Bela das Mercês estava a entrar na Botica, pela primeira vez desde que a notara através da janela.

Sobressaltado, saltou para o pequeno corredor, de modo a ter um contato visual com o vão da escada e com a entrada do sobrado no andar abaixo. Encolhido contra a parede, vislumbrou-a entrando pela porta. Imaginava aquela boca a poucos metros, sentia um perfume cálido a volatilizar-se de sua pele, e ouvia pela primeira vez sua voz grave e determinada:

Boa tarde. Necessito óleo de calêndulas; tão fresco quanto possível.

A esse pedido imperioso, seguiu-se a voz abafada e inaudível do velho Altamirando resmungando alguma coisa. Uma sacudida de cabeça precedeu a réplica da rapariga:

Não. Com brevidade. Nem pomadas nem essências; óleo recentemente preparado.

Óleo de calêndula. Era um pedido incomum. A que se destinaria? Provavelmente o velho também fizera a mesma pergunta, pois ouviu a moça a responder-lhe:

Tenho necessidade, é o que basta.

E então ela inesperadamente levantou o olhar, interceptando o do aprendiz. O choque durou um segundo exato, após o qual ele recolheu  o corpo, intimidado por ter sido descoberto nessa curiosidade infantil. Confuso, esgueirou-se de volta a seu cubículo. Não teve coragem de espiar novamente à janela, mas ouviu-lhe os passos a abandonar o sobrado e descer novamente a rua das Mercês. Poucos minutos depois, o arrastar das chinelas do velho boticário subia as escadas. Disfarçadamente, baixou os olhos para um frasco em que gotejava terebintina, erguendo-os somente quando dr. Altamirando dirigiu-lhe a voz:

Óleo de Calêndulas. Com brevidade. Hmmm…. temos calêndula?

Fingindo surpresa, o aprendiz levantou-se com expressão grave e consultou a cestaria de pétalas secas ao canto:

Um pouco… já emaciadas e sem cor.

O velho tossiu. Coçou a calva e resmungou para si mesmo, assentindo com a cabeça. Pareceu ter decidido algo, mas não dignou-se a comunicar ao jovem. Olhando por sobre os óculos, buscou alguma coisa na prateleira de velhos frascos cor de caramelo, embrutecidos pela poeira. Com gestos inseguros, separou um deles e colocou ruidosamente à frente do moço, dizendo:

Assim hão de melhorar a aparência. Dissolva e prepare uma galoneta de óleo bem cheia, para amanhã à tarde.

Obedientemente, ele concordou em silêncio, ao que o velho virou-lhe as costas e desceu novamente. Com um carinho incomum, o aprendiz macerou as  pétalas, embebendo-as na solução e enfim proporcionando óleo de girassol, obtendo um líquido cristalino e amarelado que deixaria descansar por toda a noite. Noite que  passaria insone, a pensar na moça e nas calêndulas. Nas calêndulas… e na moça, que em seu delírio tinha um cheiro de calêndula, e uma pele branco amarelada da cor das calêndulas… a pele indevassável sob a gola aérea dos vestidos, em sua excitação de apaixonado, tornava-se tátil como as flores murchas do boticário.

Adentrou o laboratório, manhã seguinte, como quem adentra a maternidade em busca do primeiro recém-nascido. Encontrou o preparado bem consistente, uniforme e exalando um odor límpido. Como previra o velho boticário, realmente aparentava ter sido feito de flores frescas e viçosas. Com as mãos inseguras, depositou o conteúdo em outro frasco, cujo exterior limpou meticulosamente, rotulando-o em seguida e identificando com a melhor letra que pôde: ÓLEO DE CALÊNDULA.

Teve a ousadia de descer, carregando o vidro precioso, em busca do mestre que cochilava em pé atrás do balcão. Altamirando percebeu-lhe a presença, mas mal girou a cabeça de condor. Não pronunciou palavra, olhando apenas intrigado para o frasco rotulado que o jovem tinha em mãos. Inspirando profundamente, disse o aprendiz:

Está feito. Não é necessário aguardar a tarde. Penso ter entendido que era caso de brevidade… poderia entregá-lo eu mesmo, ainda esta manhã.

…esta manhã…

Nada mais há para preparar, e uma caminhada é sempre bem vinda.

Altamirando encarou-o, agora totalmente desperto, intrigado com a boa vontade e a energia incomuns do aprendiz. Súbito, contraiu as pálpebras num movimento indecifrável. Talvez houvesse compreendido a intenção do rapaz e com ela fosse cúmplice, talvez apenas manifestasse uma indiferença atroz à pretensão… fato é que em dois segundos descontraiu a face, dizendo:

Se lhe aprouver… já foi pago…

Qual o endereço, dr. Altamirando?

Devagar, e sem emitir um som sequer, o velho abaixou-se para consultar a caderneta sebosa que tinha à sua frente. Sem emoção, recitou rua e número… e aquela simples combinação de dados pareceu um poema muito doce aos ouvidos do aprendiz.

Servidão de Santo Amaro, número 4.

Flutuando como ébrio, ele percorreu as Mercês sem ver coisa alguma ao seu redor. Transpôs as elevadas do Rosário, e começou a descer as vielas de terra nua que delimitavam a extensão habitada da cidade. As casas ali eram mais espraiadas, dotadas de amplos quintais e cercanias pouco nítidas. Um caixeiro solitário auxiliou o esbaforido aprendiz a localizar seu destino, uma rua envolta na sombra de uma grande figueira e margeada por toiceiras altas. Apenas quatro edificações lhe cabiam, duas a cada lado: a que buscava era a última, lindeira a um pequeno matagal. Era uma casa simples, de pintura desbotada e madeirame envelhecido, mas seu quintal era o mais limpo de toda a rua. À bem da verdade, as demais pareciam praticamente abandonadas.

Deslizando sobre uma estreita calçada de pedregulhos, bateu à porta, cada batida ecoando os golpes de seu próprio coração. A portinhola superior abriu-se, deixando entrever o rosto tão conhecido. Ainda que entregue à pouca nitidez das sombras, o rosto da moça lhe era fascinante. Respondeu-lhe agitado ao grave e profundo ”pois não” que partiu daquela boca:

O óleo… óleo de calêndulas da Botica.

A bela não disfarçou o espanto:

Não o esperava tão cedo… mas é tanto melhor…

Abriu pela metade a porta, suficiente para que estendesse o braço coberto por mangas profusas e para permitir uma breve visão do interior. Quase que imediatamente, o olhar do aprendiz foi atraído por um quadro à parede: um retrato retocado a tinta, que representava claramente a bela das Mercês, ainda mais jovem e bela… e um homem atarracado, de amplas costeletas, a margeá-la com um ar possessivo. Era um retrato matrimonial. Confuso, o jovem desviou o olhar para as mãos pálidas da moça, e nelas não encontrou qualquer anel. Sem embaraço, ela tomou o frasco de suas mãos. Ergueu o rosto. Desta vez o aprendiz, mesmo preso da vontade de fazê-lo, não desviou o olhar. Se ela percebeu algo, não demonstrou. Formalmente, agradeceu ao moço, desejando que passasse bem… e com um passo para trás, vagarosamente fechou a porta.

O aprendiz voltou-se, e o arrastar de seus pés fez gemer os pedregulhos. Estava confuso, e nesse torpor caminhou até a rua. Mas então algo o fez parar. Na servidão deserta, voltou–se e ficou contemplando as paredes e seus mistérios. Sem sequer ponderar porque o fazia, caminhou pelo relvado até a lateral da casa. O fascínio era por demais pungente para ceder à razão. Sorrateiramente, desvendou a arquitetura daquela habitação, suas janelas e postigos. Ouviu um ressoar aos fundos da casa, um retinir de alouçados. Cauteloso, esgueirou-se para o nicho formado entre duas paredes quase contíguas, e descobriu uma pequena janela semiaberta, a única entrada de luz para um quarto de banhos!

A janela, contudo, era alta. Afoito, o rapaz encontrou um grande vaso de barro abandonado a um canto do jardim. Com grande esforço, por conta do peso e necessidade de evitar ao máximo algum ruído, encostou o vaso à parede. Então subiu, ganhando visão através da janela.

O peito subia e descia rápido, uma enxurrada a percorrer seu coração. Ali estava a moça, junto a uma grande banheira. Abastecia o quarto com várias toalhas e delicados lenços, num ritual hipnótico. Súbito, parou o que fazia e emitiu um longo suspiro. Delicada e metodicamente, soltou a saia, que desceu por sobre as anáguas e caiu graciosamente ao chão. Então, mãos para trás, começou a desprender a blusa. O aprendiz sentiu o coração bater tão forte, em golpes que lhe sacudiam a cabeça, que imaginou não resistir. Poderia desfalecer a qualquer momento. Em poucos segundos, a moça concluiu a tarefa e baixou os braços, deixando cair a blusa praticamente ao mesmo tempo em que também despia, de um só movimento, a anágua.

E soergueu-se, revelando a pele cuja visão tanto desejara aquele moço.

Este quase não pôde evitar um murmúrio de assombro. Aquela pele escondida sob as roupas da Bela das Mercês era um emaranhado de sulcos e vincos, gretas de pele amontoadas desajeitadamente, em tons de vermelho vivo ou rosáceo. As pernas, os quadris, o ventre… tudo estava grotescamente deformado, vincado, feito terra recém e displicentemente arada. Os espaços entre os vales de pele queratinizada pareciam quase úmidos e pulsáteis, e era possível intuir o quanto eram dolorosos ao toque.

Eram evidentes sequelas de graves, gravíssimas queimaduras mal cicatrizadas.

E no entanto, mesmo sob aquele manto de deformidade, percebeu o quanto era gracioso, quanto era bem proporcionado aquele corpo. E aquela elegância, aquele andar seguro com que percorria as Mercês… quanta dor suportaria a cada passo! Uma mistura de desejo e piedade lhe tocou tão penosamente que não sabia onde começava um sentimento e onde acabava o outro. Seu amor transpôs os limites da experiência juvenil, de sua própria existência tão breve. Fascinado, não piscava. Agora nua, a Bela adentrou com graça a banheira, agachando-se com cuidado em seu interior, os seios  firmes  a apontar em sua direção. Ele, que outros não conhecia, soube contudo que eram lindos, apesar das inúmeras marcas… como as curvas convergentes que lhe encimavam as coxas, naquela nudez que a deformidade tornara mais profana… e talvez por isso mais erótica, mais inebriante.

Bem lentamente, a moça começou a embeber o corpo no óleo que ele lhe preparara. Deixara derramar um pouco a partir dos ombros, e o líquido viscoso fluía pelas vertentes que as quelóides formavam em sua pele. Outro tanto umedecia os lenços que ela cautelosamente deslizava pelos braços, ventre, pernas, fechando os olhos numa indecifrável sensação, prazer, dor ou alívio.

Era a dança mais bela que ele já vira na vida. Nunca desejara tanto uma mulher como desejava, naquele momento, a Bela das Mercês, a bela da nudez desfigurada que bailava em êxtase ao alcance de seus olhos. Era como embriagar-se. Ele a quis… seus dedos vacilantes, sem que ele percebesse, desenhavam no ar o percurso que ansiavam por fazer naquela pele marcada.

Deixou escapar um breve e fluido gemido. Foi quase nada, um sopro. Mas ela o ouviu. Não sobressaltou-se, apenas deteve o balé do óleo de calêndulas e voltou o olhar para a janela. Mais uma vez, os pares de olhos encontravam-se. E como das outras vezes, ela não recuou. Por alguns segundos, aquele olhar queimou tanto o aprendiz quanto o fogo lhe havia queimado a pele. Sôfrego, o admirador surpreendido tentou afastar-se da janela… mas, esquecendo o quanto estava mal sustentado, perdeu o equilíbrio sobre o vaso e caiu ao chão, esmigalhando a peça de barro cozido com o corpo.

A dor lhe assaltou de imediato, das costas, braços e pernas. Além do impacto com o solo, fragmentos pontiagudos do vaso estilhaçado penetraram-lhe a pele. Intuiu, mais que viu, que sangrava. As mãos buscavam apoio, mas neste gesto ainda mais se feriam, firmando-se como estavam sobre outros restos cortantes do vaso. Permaneceu alguns segundos estatelado, a respirar com dificuldade. Dolorosamente, conseguiu pôr-se de joelhos… e então uma sombra o encobriu.

Erguendo os olhos, novamente teve as pupilas presas pelo olhar da moça das Mercês. Estava debruçada sobre ele. Mal envolta em um largo atoalhado, com aquela nudez escaldada a sobressair entre as frestas do tecido, ela viera pela porta dos fundos a seu encontro… e havia um evidente quê de cuidado em sua atitude. Percebendo que um corte no braço do aprendiz sangrava furiosamente, tomou o lenço que trazia ainda embebido em óleo de calêndula, e aplicou imediatamente sobre o corte, provocando uma ardência inesperada. Amarrou de modo grosseiro as extremidades, estancando o sangramento. Estendeu-lhe a mão, que ele aceitou sem questionar, e ajudou o jovem a pôr-se em pé. Ainda sem dizer palavra, girou para trás do jovem boticário, tocou levemente o rapaz nos ombros, e voltando-o para os fundos da casa, conduziu-o na direção da porta.

Ele agora esboçava alguma reação, uma pequena resistência, incerto que ainda estava entre a excitação e a culpa. Mas ela o conduziu firmemente, porta adentro, até a sala de banho. Enfim, o rapaz conseguiu balbuciar:

Perdão… não tencionava…

Ela não perdoou com qualquer palavra. O cuidado impositivo falava por si. Com cuidado, ajudou o aturdido moço a despir a camisa ensanguentada, para avaliar a gravidade dos ferimentos. O fez deitar ao chão, sobre as toalhas que estendera. Ajoelhou-se ao seu lado, e limpou cuidadosamente cada corte e arranhão. Ele a admirava, estupefato. Os seios pendiam rijos, mostravam-se através da camada atoalhada que cobria o corpo da bela, e sem pensar no que fazia, estendeu a mão para tocá-los.

Ela não impediu o gesto, mas tampouco o encorajou. Permitiu, apenas isso. Ele sentiu a firmeza e o calor de seu corpo, muito mais que a aspereza da pele calcinada que o cobria. Após esse breve mas intenso toque, ele recolheu num átimo a mão, o antebraço enfaixado com o lenço dela. Quis falar, falar muito, falar como um anjo… mas tudo o que pôde dizer foi:

És doce… tu és linda…

Inesperadamente, a bela sorriu… não um sorriso aberto de moça ingênua que já não era, mas um sorriso que guardava um pouco de amargura. Ainda assim era um sorriso belo, porque pertencia àquele rosto tão amado. A moça olhou com ternura para o jovem desajeitado e ferido a seus pés, e de súbito inclinou o rosto, tocando-lhe a fronte com os lábios num beijo úmido e tranquilo, que estendeu-se numa mansa eternidade.

Depois, apenas os olhos se tocaram. Dir-se-ia uma conversa ocular, oftalmológica, mas firme e intensa. O amor atabalhoado e juvenil daquele rapazola era tão perceptível que comoveu a rapariga. Ela percebeu que o bigode que ameaçava crescer no seu rosto acabaria por lhe dar uma dignidade hoje ausente, e de certo modo essa dignidade o tornaria belo. Ele, por sua vez, entendeu quão moço era, e desejou que ela soubesse, desejou desesperadamente que ela entendesse como lhe amava… novamente, quis expressar esse sentimento em palavras, mas não as conhecia. Tudo o que disse, tomado de apreensão, foi:

Teu marido… és casada…

Ela balançou pesadamente a cabeça, em negativa. Suspirou, como que ponderando o limite das confidências, e num tom dúbio respondeu:

Meu jardim é grande… a terra é macia… sempre foi fácil cavar. Um homem pequeno não ocupa muito espaço. Está dentro da terra… e as flores nasceram tão belas, depois…

Ele compreendeu, e o seu maior choque foi não sentir choque algum. Com a mão hesitante, tocou uma vez mais a bela, no ventre deformado pelas queimaduras, e perguntou:

Mas… então… foi ele…?

Ela confirmou em um mudo inclinar de cabeça. Então as palavras represadas irromperaram em pequenos borbotões:

Óleo de calêndulas, foi o que ele disse… que eu me conformasse de estar viva e passasse óleo de calêndulas. Sabe, aquele vestido em que ele prendeu fogo era de gaze… a chama subiu rápido demais. Ele riu. Riu. É que sempre havia dito que minha indecência arderia no inferno. Riu. Tinha agora um troféu…  comprou todas as casas abandonadas da servidão, e guardou-me bem ao fundo. Era uma perversidade fria, quase amorosa… ele ria. Mas quem ri também dorme, um dia. E agora jamais acordará… cuidei disso… ora, mas ele disse, calêndulas sempre ajudam. Pois bem, agora eu cuido do jardim, da terra que eu cavei, e uso óleo de calêndulas.

Num suspiro, a bela ergueu-se, desvelando de vez sua nudez sob o atoalhado. Mas não parecia preocupada. Nem com seus pudores, nem com a compreensão súbita que cobria os olhos do aprendiz. Como se aquilo fosse inexorável, intrínseco à manhã que se acabava e, de outro modo, à todas as manhãs que se seguiriam, o acontecido em nada a perturbava, exceto por aquele afeto inesperado por seu admirador secreto.

O rapaz, por sua vez, agora era um homem. Levantando-se, pôs-se em pé ao seu lado, e tentou novamente tocar aquele corpo, mas desta vez ela sutilmente evitou o contato. Um pouco constrangido, vestiu a camisa outra vez. Com a mesma voz firme e impositiva, ela disse apenas:

É preciso que vás agora.

Ele concordou, pois nada havia a discordar. O sangue estancara do antebraço, e fez menção de remover a atadura improvisada. Ela o deteve impondo as mãos, e seus olhos silenciosamente o presentearam com aquele lenço. Do mesmo modo que o trouxera, o conduziu à porta de entrada. Assim que o aprendiz saiu, ela fechou mansamente a porta.

… e …

Não menos de uma semana depois, ele a viu novamente. Cruzava a rua das Mercês, como sempre. Roupas altas, mangas que tudo cobriam, em flagrante descompasso com as damas que desfilavam vislumbres de pele pelas pedras mal arranjadas das Mercês. Mas desta vez, ela olhou para a janela do boticário, o mesmo olhar que não recuava. E por um ou dois minutos (o tempo de percorrer o espaço entre um e outro caixilho da janela) ele também não desviou o olhar. Nesse encontro das retinas, nesse amor feito com os olhos, tomaram uma decisão.

Dois dias depois, desapareceu. Houve quem dissesse tê-lo visto, procurando um caminho que levasse ao mar. Outros constataram apenas que não mais retornou à Botica, e em pouco tempo sua ausência foi esquecida. Certo é que sumiu… em estranha coincidência, também desapareceu a moça de roupas compridas que aparecia na janela da rua das Mercês, e pouco a pouco aquela casa (e toda a servidão de Santo Amaro) foi engolfada pelo matagal.  Nunca mais houve algum pedido de óleo de calêndulas na Pharmacia Miracculosa, e o sobrado foi vendido pelo genro do velho Altamirando após sua morte.

Mas a janela, esta ainda está lá…

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Uma manhã

 

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Ele disse, assim tão repentina e descabidamente, como quem diz ”acho que vai chover”..:

Meu amor, como você é linda!

Ela não girou a cabeça, ocupada como estava em ajustar a altura exata do cinto (nem muito acima da cintura para não acentuar demais os seios, nem muito abaixo para insinuar que havia um pouco a mais de quadris do que gostaria); não sorriu ou agradeceu, limitou-se a ponderar:

Linda… não sei como… é pura ruga no rosto, é este corpo de baleia…e as olheiras…

Nas primeiras vezes, ele ficava frustrado. A toda veneração, ouvia uma contraposição. Pensara em não falar mais nada. Depois… ora, depois. Duas criaturas que passam a viver juntas desenvolvem uma antropologia única, e ele descobriu com deleite de aprendiz que quando o ”depois” foi se insinuando na relação, passou a não aborrecer-se com a aparente rejeição que ela manifestava ao seu eterno deslumbramento. Ou, dito de outra forma, resolveu adotar aquele deslumbramento órfão de mãe. Ele era seu, prescindia da aprovação dela.

Elogiava aquela mulher quando bem entendesse. Beijava sem esperar convite, dizia ”eu te amo” em expectativa surda para a presença ou ausência de uma resposta. Não aguardava momento para apontar suas qualidades, ou expressar sua admiração. Aquela veneração era, em verdade, sua. Era a expressão de algo que, por expansiva ou sufocante, era maior do que cabia em seu coração. Precisa ser dita, manifesta, escancarada. Assim vivia mais feliz. No entanto, por mais que não se angustiasse com isso, em verdade não sabia o que a mulher sentia.

Ela poderia tolerar, com sincera indiferença… afinal, tantas outras toleravam coisas piores e seguiam relações sem nem saber o porquê… toleravam traições e espancamentos… então, tolerar elogios e excessos de zelo seria até menos penoso. Poderia, também, apenas suportar… sim, pois o mel em excesso não há de fartar e enjoar? Poderia suportar com desagrado, com a angústia de quem não sabe até quando será capaz, torcendo sempre para que não se repetisse.

Poderia desgostar, tomando por falsidades de método… pensar que o homem fosse de uma incorrigível e automática tendência à corte, à sedução vazia, e assim duvidar da sinceridade de cada um daqueles gestos. Poderia também sentir exatamente o que manifestava, uma íncuba e tenaz ojeriza a si mesmo, tal que nem mesmo a constância da admiração alheia pudesse reverter (e assim fosse para todo o sempre)…

Ou ainda, poderia, no íntimo apreciar… seja com aqueles resquícios infantis de timidez que não permitiam ceder à honestidade dos elogios, ou com a mera firmeza de propósito que lhe pedia para, mesmo lisonjeada ao extremo, demonstrar jamais! Pode ser que, embora não reagisse, não fosse capaz de suportar um único dia sem um elogio, um beijo, um carinho inesperado daquele homem…

… fosse como fosse, representava sempre o mesmo papel.

Mas naquele dia ele levantou-se da cama, afastando os lençóis sem muito cuidado. Talvez como quem segue seu modo de pensar, talvez como quem resolve deixá-lo mais claro, tomou-lhe a cintura onde recém se encaixara o cinto, e enlaçando a mulher por trás, beijou com delicadeza cada ruga que encontrou em seu rosto. Ela, de modo igualmente insondável, permitiu a ternura em silêncio. Ele sorriu, mostrando suas próprias rugas, e disse:

Vai chover à tarde… e eu te acho mais linda hoje que quando você tinha quinze anos.

Ela sorriu enigmaticamente. Poderia ser isso… poderia ser aquilo… mas, de qualquer modo, devolveu-lhe um beijo suave. E, no fundo, ele mesmo sabia que ”poderia” ser muita coisa. Mas não importava mais. O que quer que houvesse, aquele jogo era de uma compatibilidade quase mística. Era paz, era a paz que haveria nas gotas de chuva quando ela chegasse ao final da tarde à procura de seu ombro.

E, fosse lá pelo que fosse, ele estaria lá.

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Os seres humanos costumam desejar ardentemente a mudança, mas possuem um arraigado e poderoso receio dela.

Não por acaso, Thoreau observou que “muitos homens vivem vidas de silencioso desespero”. A espécie humana é dotada da faculdade de pensar e sonhar, por isso eventualmente se dá conta de que vive aquém do que gostaria e elabora fantasias sobre como aproveitar melhor sua existência na Terra. Essa crônica insatisfação poderia ser o gatilho da liberdade, mas na verdade costuma provocar angústias colossais quando bate de frente com uma característica atávica: o irracional medo da mudança. Ou, dito de outra forma, o medo do arame farpado.

Esqueçam fantasmas, feras selvagens, aranhas ou tsunamis. A entidade que mais provoca medo em seres humanos é o arame farpado.

Por força das circunstâncias, quase todos os homens e mulheres deslizam para uma vida de acomodação; para uma atividade, um emprego ou um casamento que não lhes ofereça grandes riscos mas também não lhes proporcione grandes emoções.

Uma metáfora perfeita para esta situação é a do  cercado com cobertura, rodeado por uma espessa cerca de arame farpado. O animal preso neste cercado tem um local onde se abrigar da chuva, do frio e do calor. Recebe um mínimo necessário de comida e água para sobreviver. Dentro do cercado, está seguro do ataque de predadores, não morrerá de inanição, de frio ou calor. No entanto, através das frestas do arame farpado  pode ver o mundo imenso que há lá fora, com suas planícies e rios, colinas e caminhos para trilhar,  o sol a se por sobre montanhas, o cheiro da brisa do mar. Com estes estímulos, é possível sonhar uma vida melhor, mais rica, mais emocionante, mais plena.

.
E o animal cercado sonha. Nos sonhos, tudo é perfeito. Fora do cercado, andará descalço às margens dos rios… frutas e animais silvestres lhe darão sustento, verá praias de sonho e ouvirá o som plácido de uma floresta ao entardecer. Encontrará outros de sua espécie, poderá correr, saltar e dançar sobre a grama. Mas ao baixar os olhos percebe que não será fácil atravessar o arame farpado… não sem graves ferimentos e arranhões. E, tal qual a raposa frente às uvas que não pode alcançar, começa a imaginar os obstáculos, os óbices: e se lá fora não houver comida? E se os animais selvagens vierem a seu encalço? E se a neve o soterrar no inverno e o sol o esturricar no verão?

Eis que estremece, vislumbra o fio do arame apontado para si… o fio que vai cortar a carne, que vai roubar-lhe o sangue e deixar cicatrizes longas e duradouras. O arame farpado grita, e o animal resigna-se a voltar para a palha do cercado. Ali… ora, ali a comida é quase intragável, mas não falta. O teto é horrendo, mas protege da chuva. Ali os leões e lobos não podem entrar. Acomodemo-nos, é mais seguro. O animal então adormece, amedrontado demais para sequer imaginar uma forma de fugir.

Mas esta criatura, adormecida no cercado, insistirá em sonhar. E acordará no silencioso desespero de Thoreau, alimentado pelo medo ancestral do arame farpado.

… alguns animais são mais desesperados que outros. Um belo dia, a lava deste desespero será tão intensa, tão insuportável e sufocante, que ao animal só restará derreter… ou tentar fugir. Alguns deixar-se-ão derreter, e serão apenas um nome a mais na lista da previdência social, uma frase em uma lápide, uma foto antiga postada a título de farsa em um perfil de rede social.

E outros irão jogar-se contra o arame farpado.

Sentirão as pontas ásperas e agudas do metal afilado insinuarem-se na pele, lacerando tendões e nervos, roubando-lhe filetes de sangue e provocando uma dor lancinante que pulsa a cada batida do coração.

Oh, sim: o arame farpado dói. Fere, rasga, parece que queimará para sempre. Mesmo depois de ultrapassado, as feridas que deixou irão arder por muito tempo. É lentamente que a carne exposta virá a ser substituída pela crosta abençoada das cicatrizes. Apenas imaginar tudo isso mantém a maior parte dos animais em seus cercados. E muitos deles, muitos mesmo, decidem interromper a fuga em seu intermeio, e retrocedem. Para estes, é ainda pior, pois carregarão a dor e as cicatrizes sem conseguir atingir seu intento.

Mas, enfim, aqueles que ultrapassam o arame farpado pouco a pouco se recuperam. Olham para trás e não sentem mais o desejo de voltar. À sua frente, a liberdade e os caminhos abertos são maiores e mais belos. Sabem que é preciso cuidado, que há outros perigos além dos já vencidos… mas quem venceu o arame farpado é mais forte. O arame farpado deixa mais que cicatrizes, deixa o espírito encharcado de uma coragem que antes era desconhecida.

Segura firme em minha mão, acredita no que há do outro lado. Também me fere o arame farpado, mas eu já o conheço, não o temo. Confia em mim e rompe teu cercado. De tuas cicatrizes, eu cuidarei. Tua dor, dividirás comigo. E o caminho que há em frente… esse, minha linda, trilharei ao teu lado.

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Uma fita amarela

Como é profundo e aterrorizante o medo de decepcionar a quem se ama… o medo de perder a admiração de quem justamente mais desejamos, ardentemente, que nos admire!

Uma velha e adocicada canção country americana, composta por Irwin Levine e L. Russel Brown (Tie a Yellow Ribbon round the Old Oak Tree) conta uma singela fábula sobre isso… a letra da canção narra a história de um homem torturado pelo medo de ter decepcionado a mulher que amava, e assim ter de enfrentar a possibilidade de que ela não o ame mais.

Em resumo, a letra é narrada do ponto de vista de um passageiro de ônibus. Este personagem estava preso durante os últimos três anos, tendo finalmente recebido a  liberdade. O ônibus o está levando de volta para casa. A canção não deixa claro por que motivo o protagonista estava preso, que delitos cometeu, mas isso nem é relevante.

Ele explica aos demais passageiros do ônibus que o que mais o fere é a possibilidade de que sua mulher tenha deixado de lhe amar nestes três anos – de que ver seu homem cometer um crime e ser humilhado perante a sociedade tenha partido seu coração de forma irremediável. Está implícito o quanto ele se sente envergonhado, que considera justa a punição (cumpri minha pena, paguei o que devia) – mas não obstante ter recuperado a liberdade, ela nada lhe valerá sem o amor da mulher que deixou para trás. Ele não se julga mais digno do amor dela.

A dúvida que ele tem é, basicamente, se ainda MERECE o amor daquela senhorita que foi forçado a abandonar três anos atrás. Incapaz de perguntar diretamente à moça, temeroso de conhecer de antemão a verdade, ele tece um pequeno estratagema: pouco antes de ser solto, escreve uma carta à sua amada. Não pede nem aguarda uma resposta… diz apenas que no dia tal, a tal horário, estará dentro do ônibus que passará em frente a sua antiga casa. Ora, no quintal desta casa, muito imponente e sereno, está fincado um velho carvalho sob o qual o casal teria passado horas românticas em tempos passados. Ele pede a ela um único sinal:

Se você ainda me amar, amarre uma fita amarela ao redor do velho carvalho. Essa fita, eu a verei de longe. Se eu não vir uma fita amarela ao redor do carvalho, eu ficarei no ônibus, nem vou descer. Esquecerei tudo o que houve entre nós, pode pôr a culpa em mim, siga sua vida, seja feliz. Se houver uma fita amarela no carvalho, eu descerei e conversaremos. Se não houver uma fita amarela ao redor do carvalho, ficarei no ônibus e de algum modo tocarei minha vida adiante.

Nosso herói, então, termina de contar a história para todos os passageiros do ônibus, que compreensivelmente estão ansiosos para saber o desfecho da cena. Quando o ônibus vira a esquina de sua casa, ele, incapaz de encarar o carvalho, pergunta aos demais passageiros se há ou não uma fita ao redor da árvore. E então ouve dezenas de estrondosas risadas…todo o ônibus está rindo alegremente. Ele abre os olhos e mal pode acreditar no que vê:

centenas de brilhantes fitas amarelas amarradas ao redor do velho carvalho!

 

Bom, a música acaba… a historinha também. Mas amor realmente não acaba? Não sou daqueles que acha que amor é absurdamente incondicional… amor tem vida, feito plantinha ou filhote, precisa de cuidados e água todos os dias. Não se deve escravizar o ser amado em uma servidão eterna e devotada sem contrapartidas, apenas pela tentação do orgulho onipotente de ver se venerado e distinguido na multidão, como se tal distinção fosse eterna, inexigente e imutável feito direito divino. Amor pode sim murchar e morrer, e a decepção é justamente seu veneno mais letal.

Contudo, amor de verdade é absurdamente resistente. É planta sim… mas tem a resistência de erva daninha. Pode até secar, murchar, converter se em um arbusto seco, contudo algumas gotas de água fazem milagres. Decepção mata certeira outros tipos de relações, sociedades, amizades… mas o amor verdadeiro é justamente o laço humano que se mostra mais capaz de perdoar a decepção (não abusai, ó incautos).

Paradoxo este… o amor é justamente o arquiteto cego que constrói um pedestal, onde o ser amado é depositado, dotado da perfeição impossível. Por isso, deveria ser a decepção uma derrota suprema e inapelável, o terremoto, o tsunami impiedoso… e no entanto às vezes o que emerge não é nada disto, é justamente o verdadeiro nascimento do amor: livre da casca incômoda de admiração insuperável, a decepção mostra o ser humano verdadeiro, aquele que realmente habita o corpo do ser amado, e que é mais factível de REALMENTE ser amado. E assim, libertos das máscaras e armaduras, é que podemos  amar e se permitir ser amados sem temor.

Amar a pessoa verdadeira, com todos seus defeitos e virtudes, é provavelmente o único modo de amar. Só ama quem se descobre capaz de pendurar fitas amarelas. Dito de outro modo, menos piegas (só um pouco menos), a personagem Jennie de Love Story , morrendo de leucemia, diz para seu inconsolável (e confusamente culpado) Oliver:

Amar é nunca ter de pedir perdão.

A frase ficou célebre, o filme também… ambos, o filme Love Story (baseado em um livro do Erich Segall) e a música Tie A Ribbon Round The Old Oak Tree…, são dos vistosos anos 70, onde não era feio ser brega… bem, saudades dos anos 70, de um agora quarentão!

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Equinócio

23 de setembro de 2011, Equinócio da Primavera no Hemisfério Sul. O dia e a noite duram exatamente o mesmo número de horas; o sol incide igualmente sobre os dois hemisférios da Terra. Um momento preciso, um instante astronômico, uma figura única na coreografia que o planeta executa ao redor do Sol. A frase “somos todos iguais sob o sol” consegue adquirir sentido semântico pleno. Contraditos pelos astrônomos e sua busca pela verdade, os místicos surdos da crédula astrologia alegam que a Terra entra sob o signo de Libra…

Há algo que hipnotiza no balé dos astros, algo a que a mente humana é adicta, ainda que nem sempre compreenda. Há fascínio na observação do céu. Os planetas rodopiam, marcham, brincam de pique. Vênus nasce e morre todas as noites; cometas surgem e desaparecem, estrelas cadentes riscam o céu como um traço de giz que se evanesce. O olho da Lua brilha como uma pupila amarelo-prateada no céu, ou cerra lentamente as pálpebras como se adormecesse fatigada após semanas de vigília.

A vida dos homenzinhos é tão curta, perto destes mundos aparentemente eternos… e no entanto tão cíclica e finita quanto a deles. “Sois poeira de estrelas”… sim, cada átomo de nosso corpo não nasceu aqui, entre a grama ou a lama da Terra. Cada partícula do carbono ou hidrogênio que te forma foi forjada na fornalha do Sol ou de uma outra estrela muito distante daqui. Talvez tenham, estes teus átomos e os meus, nascido no mesmo berçário cósmico; ou não, pouco importa. De repente, tua matéria e a minha se chocam, colidem com uma troca de substância que nos muda para sempre, tal qual a Terra atingida por um astro errante que lhe arrancou a Lua.

Num espaço tão imenso, cheio de vácuo e de asteróides errantes, a nossa órbita irregular cruzou duas vezes… a primeira foi um raspão, um perigoso e inadvertido escorregão celeste que marcou muito mais o meu planeta que o teu. Feito duas bolas de bilhar que se chocam, a colisão nos arremessou para galáxias tão distantes uma da outra como podem ser os destinos destas vidinhas humanas. Meus astrônomos, coitados, por anos e anos buscaram sinais de tua existência, da rota improvável a que a gravidade de outros astros te havia imposto. Como os cometas da antiguidade, te tornaste uma lenda, um ícone gravado na memória de retorno improvável e incerto.

Sim, pois não é a estrela mais distante a que mais fascina…?

Enfim, sem que houvesse sequer um aviso destes astrônomos displicentes, te chocaste comigo outra vez… mas a irregularidade indiferente da cosmologia fez com que, desta vez, o choque fosse brusco e magnificente. Tão imponente foi o choque que teu planeta e o meu deixaram de existir, esfacelados numa só massa de asteróides que giravam loucamente, matéria em desalinho que buscava a organização… e de dois mundos imperfeitos, a colisão criou um único astro ainda imaturo, buscando a luz e o equilíbrio.

É equinócio neste nosso mundo novo, ainda cheio de vulcões primitivos e de continentes em formação. Há água, há oxigênio, há o pulsar da aurora boreal em nossos pólos. Hoje o sol brilha igualmente em nossas duas metades, nossas duas individualidades, nossos dois hemisférios que hoje formam um planeta só. Há uma promessa de vida a brotar lenta e decididamente, à procura do solstício de nossos sonhos… buscando violar uma regra cósmica, pretendo girar sempre em louca harmonia e equilíbrio ao redor de nosso Sol, um equinócio eterno de luz por igual para as duas metades, uma busca de mãos unidas pelo ciclo fugidio da felicidade.

Vem comigo pelo firmamento, risquemos nós dois o céu feito um só astro cadente… quem sabe assim a gente aprende a ser feliz.

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Noites sem sentido…

Dizia uma daquelas lendas da música pop que o casal Paul e Linda McCartney, durante toda sua convivência (de 1969 até a morte de Linda em 1998) havia permanecido apenas uma única noite separados um do outro. Muito provavelmente folclore (tanto quanto a ridícula polêmica sobre a morte de Paul), a lenda contudo tem ecos na canção No More Lonely Nights, escrita por McCartney:

May I never miss the thrill of being near you
And if it takes a couple of years
To turn your tears to laughter
I will do what I feel to be right
No more lonely nights
Never be another
No more lonely nights
Youre my guiding light
Day or night Im always there
And I wont go away until you tell me so
No I’ll never go away
 

Dormir acompanhado pode parecer um eco ancestral, um instinto atávico de proteção que vem do DNA de nossos antepassados das cavernas (afinal, um grande grupo dormia mais seguro que um único australopiteco dando sopa para os predadores), mas desconfio que haja mais que isso. Afinal, mesmo na segurança de nossos apartamentos/fortaleza, e na ausência de qualquer vantagem em ter um cônjuge sonolento ao lado se um ladrão ousar aparecer, muitos de nós não negam o deleite de dormir ao lado de uma boa companhia.

Talvez nem sempre tenha sido assim. Claro, os pobres de qualquer época da humanidade estavam sempre próximos pela exigüidade do espaço… mas os reis e nobres, em especial os de tradição anglo saxônica, costumavam ter suas alcovas reservadas apenas para o sono e as obrigações maritais (ou variações), enquanto as consortes dormiam em seus próprios aposentos. Quando criança ainda, ao ler os primeiros romances de Agatha Christie, ficava intrigado ao saber que os lordes ingleses não tinham quarto de casal, e sim o quarto de Mr. Denwey separado de Ms. Denwey, e etc. Bom, talvez por suportarem tantas convenções sociais gélidas é que os personagens de Christie acabassem se matando tanto…

Mas, nos dias atuais, a cama de casal é o item primordial na mobília dos recém casados, e não obstante a procura por modelos cada vez maiores, é difícil encontrar quem negue a pretensão de dormir o mais aconchegado possível (quando o sentimento é verdadeiro e não o ranço que acomete alguns depois de anos de relacionamentos mal construídos). Expressões populares como dormir de conchinha ou empernado retratam na pitoresca linguagem do povo a delícia que é descansar ao lado de quem se ama.

Há poucas coisas que deixam o ser humano mais próximo de entender o conceito de paz do que sentir alguém muito querido adormecer em seus braços. Particularmente, a sensação da cabeça da mulher amada repousando sobre o peito, mergulhando pouco a pouco de modo tranqüilo e satisfeito no mundo dos sonhos é indescritível.

Temos de nosso, exclusivamente, o corpo que segue nossos trancos e barrancos desde o nascimento. Como diz o adágio popular, sozinhos nascemos e sozinhos morreremos… mas dormir com a pessoa amada cria uma magia, faz um truque acontecer, dá a ilusão quase perfeita de que às vezes podemos superar esta maldição e dividir a busca de sentido da vida com aqueles braços, aquelas pernas, aquela respiração que pulsa ao nosso lado.

Somos todos insignificantes enquanto membros da espécie. Dentre bilhões, pouca coisa nos destaca na multidão, e mesmo isso um dia deixará de ter importância, porque nossos dias se acabarão como os de todos os demais. A busca por sentido é uma grande angústia que traz ansiedade e desconforto a milhões de homens e mulheres no mundo. Não há uma resposta a esta pergunta, exceto a tentativa do personagem de Cronshaw do Somerset Maugham (ver o post https://polifonias.wordpress.com/2010/12/04/ja-errou-demais-na-vida-compre-um-tapete-persa/  ). O psicanalista Vitor Frankl, criador da escola de pensamento Logosófica, propunha que a busca por um sentido é que faz a vida ter sentido. Ou, dito através de seu lema, quem tem um porquê sempre encontra um como. No caso específico de Frankl, ele sobreviveu a toda a degradação e tortura de um campo de concentração nazista buscando um sentido na busca por reencontrar sua mulher, também presa em outro campo.

Podemos fazer deste porquê um objetivo material, uma carreira, um sonho… mas talvez por sermos animais de tendência monogâmica e pequenas ninhadas, é comum que encontremos este porquê a nos esperar sonolenta em nossa cama.

De algum modo, quase todas as seitas, religiões e organizações coletivas perceberam a necessidade que as pessoas tem de formarem casais, de encontrarem testemunhas para suas vidas, pessoas em quem confiar o suficiente para partilhar a vulnerabilidade do sono, ou para permitir aquele momento sutil em que as confidências mais íntimas vêm à tona, quando se abraça alguém muito desejado (muitas espiãs se aproveitaram disso). Antropologica ou romanticamente, temos o desejo de dormir com alguém… e esse desejo se torna uma verdadeira necessidade quando o amor, aquele mesmo que é quase intraduzível mas que todos compreendem, dá as caras. O amor pede que não haja noites solitárias, exige, faz do dormir de conchinha a sua missa, o seu ritual.

Também produz o efeito colateral de reconstruir o conceito da solidão noturna, ou mais propriamente de criar sua existência. Mesmo que a ausência da pessoa amada perdure por vinte e quatro horas, a maior quantidade de lágrimas, estatisticamente, é derramada sobre travesseiros solitários em altas horas da noite.

Cínicos (e sempre os há) argumentarão que, após alguns anos, a cama vira um campo de guerra pela posse dos cobertores e contra o ronco, os chutes e outros hábitos mais escatológicos e incômodos dos parceiros. Talvez. Mas isso também pode ser apenas um disfarce, aquele outro velho hábito dos seres humanos em minimizar sua ternura para não reconhecer suas próprias vulnerabilidades.

Os ainda mais cínicos, e igualmente desconfiados, também protestarão em favor do direito de escolher sem imposições qual vai ser (e quando) a taxa de ocupação da cama e a identidade da companhia,  não estar condicionado a nada e ninguém, um protesto em favor da solidão quando desejada, um apelo à liberdade ainda que à tardinha…

Ou os românticos é que são felizes, partindo para o abismo do sono com um sorriso ao descobrir a paz no tênue ronco da pessoa amada. Encontrar o sentido da vida nas noites partihadas, ainda que o preço seja a tristeza das noites solitárias… ah,Paul… a solidão não é mais a mesma coisa… quero fazer parte do coral…

No more lonely nights!

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Ser ou não ser… ridículo

 Fernando Pessoa escreveu:

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são ridículas . (…)

Sentir é íntimo, é único e incompartilhável. Disse Hannah Arendt que a dor é a mais profunda e pessoal experiência de um ser humano; no sentido de que ninguém jamais saberá como exatamente é a dor do outro. Adaptando a percepção de Arendt, é possível dizer que o prazer e o amor são igualmente inexplicáveis. Jamais saberemos (embora o desejássemos)  se o outro nos ama como o amamos.

E todo aquele que se apaixona sente vontade de demonstrar, de gritar o que sente, como se aquela confusão sentimental toda fosse grande demais para caber em um só peito. Nem todos são capazes de expressar do mesmo modo; há os que verbalizam em torrentes de declarações, há os que são mais calados e os que demonstram com gestos, atitudes ou até mesmo em mudanças sutis de comportamento. Não há como definir um padrão de expressão.

Mas os habituais leitores de revistas masculinas e femininas (e eu, eventualmente, acabo lendo as duas classes de revistas, já que leio tudo o que me cai na frente, até rótulo de xampu) certamente já se depararam com conselhos do tipo: nunca diga tudo o que sente, nunca se demonstre completamente conquistado, nunca abra o coração, evite excessos de paixão…

Até posso compreender a sutil lógica por trás destes conselhos… e ainda há o velho ditado de que mel demais enjoa… mas não sei deixar de ser fernandopessoamente ridículo. Gosto de expressar, falar muito e sempre, permitir que a mulher que amo possa saber de sua importância, da capacidade que tem em inspirar tais sentimentos, da paz, do carinho, do tesão, da ternura que provoca.

Ridículo, piegas, tolo, enjoativo, abobado… bem, uma velha máxima machista diz que o que atrai as mulheres é justamente o descaso, o desprezo… que as mulheres vivem suplicando e caindo de joelhos aos pés dos homens que as desprezam. Dito assim, como receita de bolo, pode parecer prático… mas não creio que relacionamentos sejam, em verdade, algo tão burocrático e previsível. Algumas percepções de vida aqui e ali já demonstraram que há um fundo de verdade nisso tudo, mas a porção ridícula dentro de mim é indelével, parte de minha essência, e não pode ser contida por decepções ou pelo medo do fracasso. Sou assim.

Talvez nós, os ridículos que escrevem cartas de amor, no fundo… no fundo, possamos imaginar que haja mulheres para as quais haja felicidade em deitar um dos ouvidos contra nosso peito (porque sabemos ser masculinos e protetores, além de ridículos) e manter o outro livre para adormecer ao som da reafirmação que fizemos de toda a paixão que nos encharca o peito. São mulheres coloridas e especiais, que não fazem parte da amostra daquelas revistas…

Afinal, quanto menos não seja, como dizia o cantor country Garth Brooks na canção If Tomorrow Never Comes:

Às vezes, tarde da noite, fico acordado e a admiro dormindo (…) e os pensamentos cruzam minha mente/ se por acaso eu morrer, se não acordar na próxima manhã… será que ela saberá o quanto eu a amo? (…) perdi outros amores nesta vida, pelos quais fui incapaz de dizer quanto os amava, e hoje vivo com o arrependimento de não ter dito o que sentia/ por isso fiz uma promessa a mim mesmo, de dizer a ela todos e todos os dias o quanto ela significa para mim/ e evitar a possibilidade de que não haja uma segunda chance de fazê la saber o quanto eu amo…(…)

Recusando as advertências, os conselhos dos ditos e ditas experts, sei que estou me arriscando em um mundo onde (segundo eles) a dúvida, a adrenalina, a angústia e a a insegurança são o que mantém os relacionamentos. Mas os ridículos costumam ser assim, gauches e incorrigíveis, por toda a vida. Do contrário, correm o risco de recitar com amargura os trechos finais do poema de Pessoa:

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(…)

De tudo, minha linda, à todas as coisas que se deve ou não fazer, escolho o risco de ser um eterno ridículo e não permitir, enquanto for doce a teus ouvidos, que fiques um único dia sem saber da paz e do amor insuperável que trouxestes à minha vida.

Ridiculamente… com orgulho.

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O Sol do Inverno

– Num frio destes é que a gente aprende a amar o sol do inverno!- Não soou como uma frase estudada,  nem como uma tentativa de iniciar conversa… parecia um pensamento que se evadira, uma epifania fugitiva que deslizara pela língua: ela a pronunciara de olhos semiabertos, sorriso semiaberto, alma semiaberta, fruindo a luz e o calor do sol que ela louvara.

No mesmo instante, ele percebeu que o verdadeiro nome dela era um pormenor irrelevante – merecia ser chamada apenas como “mulher colorida”. Era fascinante constatar quantos matizes e cromaturas aquele mesmo sol de inverno parecia capaz de revelar em seu rosto. A pele, por si só, era uma delicata marchetaria de tons de rosa, laranja e um branco quase azulado – nenhum deles sobrepondo-se ou interrompendo o suave evanescer do outro. Rugas havia, bem como duas ou três cicatrizes e algumas sardas esparsas – mas estes acidentes só a tornavam ainda mais bela, porque forçavam o observador a perceber que ela era real, angustiantemente palpável e natural.

Sobre essa tessitura iluminada pelo sol, encaixavam-se os vértices mais coloridos da composição: os olhos e a boca. Aqueles, feitos de uma íris de azul incomum, mais plúmbeo (embora menos denso) que o do céu sem nuvens que os vigiava, e uma pupila muito negra e impositiva. A tonalidade da boca variava de acordo com o batom, era verdade… mas era boca tão bem esculpida em um alto relevo de pequenas estriações, que assim ao natural mais se assemelhava a um longo e bem traçado ideograma avermelhado.

E então ele sorriu, afinal era o que mais se havia para fazer frente ao espetáculo… e ela sorriu em retribuição, apenas pelo prazer que há em se sorrir ao sol de inverno. Em tom de brincadeira, ele complementou:

– Mas este mesmo sol é o que odeias no verão, cozinhando a tua sala sem janelas…

– Oh, não. Aquele é outro. Este é o sol do inverno.

– Ah! É que são tão parecidos!

E ela sorriu ainda mais, o ideograma vermelho da boca transmutando-se em inscrição mourisca, longa e curvilínea. O rumo da conversa lhe agradava, o nonsense e a verdade flertando em suas palavras:

– Eu te digo: são dois! Esbarram um no outro no outono e na primavera, mas afora isso mal se falam. O sol do verão e o sol do inverno… o sol do verão é mais profissional, mais metódico e aborrecido: é feito um funcionário público, um burocrata acomodado. Afinal, se surge o dia todo nada mais faz que a obrigação (e, como notaste, às vezes ainda é tripudiado por isso)… mas se acaso falta, se dorme um pouco e permite a chuva, é chamado de incompetente e omisso: ora, o sol do verão tem obrigação de brilhar e aquecer! Mas o sol do inverno… este nunca se sabe se vai dar as caras. É elogiado até quando cumpre minimamente seu dever, quando mal estende uns filetezinhos rasos de luz que nem aquecem direito. E num dia como hoje… foi o que eu disse: num dia como hoje é que se aprende a amá-lo!

Divertindo-se, bebendo suas palavras adoçadas pelo sorriso, ele engajou-se no assunto:

– Então certas pessoas são como os teus sóis… as amamos porque nos aquecem quando não o esperamos!

A mulher colorida permitiu que o sorriso diminuísse um pouco – mas não de todo, porque isso era quase impossível naquele rosto que em si já era um sorriso- e traduziu a intenção do comentário:

– Eu fui teu sol do inverno…

Agora o sorriso dele era tão terno quanto o dela:

– Meu sol de inverno. Duas vezes! Brilhou quando eu não esperava… quando o resto era gelo… é, quem sabe?

Ela aproximou o corpo tão lenta e marcadamente quanto pôde (porque queria mesmo que o gesto parecesse teatral), até que tocasse o dele. Ainda assim, em virtude do entremeio desajeitado das cadeiras, foi necessário alongar o pescoço para permitir que os dois sorrisos se tocassem, se reconhecessem e se compreendessem. O sol também os beijava, e eles sabiam. Os dois sabiam.

– Te ver brilhar de novo, tantos anos depois… sabes que és mais linda agora que era vinte e cinco anos atrás?  Mais linda que no primeiro inverno em que brilhaste… tornou-se uma mulher, um sol maduro e mais confiante. Tens mais cores!

– Mais cores!

– E foram vinte e cinco invernos sem esse sol…

– Oh, eu não era um sol. Era só uma menina…

– A menina mais bonita da escola. Mas isso era o de menos… o que aquecia era a ternura com que me tratavas, tua simplicidade de astro distraído! Eu me assombrei… nunca havia visto o sol, e fora inverno desde sempre.

– Mas foi um ano apenas. E depois houve verões em tua vida…

– Depois houve outros invernos sem sol, e verões de sóis extenuantes.

– Houve sóis em teus verões… e tu me esqueceste.

Ele contraiu as sobrancelhas, como que para admoestá-la, alertar que aquele tom de nostalgia a faria monocromática como as outras.

– Nunca te esqueci. Dormiste comigo todas as noites.

Ela riu, e novamente era colorida… explosivamente colorida:

– Então às vezes devo ter sobrado em tua cama!

Mas, embora parecesse uma observação ácida, não era; selou-a com outro beijo e um sorriso de cores intempestivas. Ele beijou-a com a boca, com os olhos, com a alma, com a ponta dos dedos que roçaram-lhe as bochechas. Beijou-a uma vez, e nela habitaram todas as milhares de vezes que deixara de beijá-la.

– Tua luz me reencontrou…

A tarde ia findando, mais fria e mais cinzenta. Mas a mulher era colorida, era quente e luminosa. Ele era feliz.

– Vamos para casa?

E depois deles, anoiteceu.

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Tempo de plantar…

Certas pessoas gostam de ter na manga frases de efeito, citações referenciadas ou não, para brindar ouvintes e leitores em momentos apropriados. Algumas delas, pelo uso universal e freqüente, perdem um pouco o impacto desejado. “Amar é jamais ter de pedir perdão” (Segall), “ninguém nunca se banha no mesmo rio duas vezes” (Heródoto),”um país se faz com homens e livros” (Monteiro Lobato), “as mais belas jóias, sem defeito, com o uso o encanto perdem” (Shakespeare), etc…

Mas algumas destas pérolas ainda guardam o brilho sob a camada de pó depositada pelas multidões. É o caso da célebre “há um tempo para tudo sob o céu, tempo de plantar e um tempo para colher o que se plantou…” (do Eclesiastes).

Tudo que há sobre a Terra é cíclico… desde a obviedade das fases da Lua até nossa trajetória de vida. Nosso cérebro ocidental, organizado e muito cartesiano, às vezes nos faz acreditar que podemos escrever a crônica da nossa existência de uma forma limpa e ordenada, em linhas retas ou sempre ascendentes. A juventude, aliás, é cega para a natureza sazonal da vida… os mais experientes, contemplando retrospectivamente as idas e vidas da maré em seu passado, conseguem serenidade suficiente para aceitar as idas e vindas presentes e futuras (e ficar mais próximos da paz).

Não apenas porque existe o tempo da alegria e o da tristeza, e nenhum deles é eterno ou invulnerável ao outro – mais que isso, certas fases de nossa vida são como o provérbio bíblico: tempo de semear e tempo de colher. E as fases que costumamos chamar de “negras” (onde tudo dá errado, onde não vemos luz no fim do túnel, onde os sorrisos teimam em escapar) calham de ser justamente aquelas mais propícias para semear.

Ao contrário da filosofia “clássica” de auto-ajuda, segundo a qual o simples pensamento otimista atrai tudo o que há de bom (o “segredo” mais improvável do mundo), o que alguns estudos de fundo estatístico demonstram é que a maior parte dos que estão de bem com a vida é composta por aqueles que, em suas fases “negras”, decidiram acreditar que as coisas estavam ruins sim, precisavam aceitar a realidade e lutar para mudá-la.

A escritora sino-americana (Nobel de Literatura) Pearl S. Buck escreveu a vida toda sobre o cotidiano da China pré-revolução comunista. É uma leitura agradável e muito impactante sobre aqueles que conhecem pouco do modo de vida oriental. Uma de suas obras mais conhecidas, “A Boa Terra”, narra a saga da família do pobre lavrador Wang Lung, atingido pelas agruras da fome, da miséria e da ignorância – mas que, graças a um forte instinto de sobrevivência e uma cultura voltada para a luta pessoal, supera as fases adversas e acaba por tornar-se próspera. De modo geral, todas as grandes epopéias seguem este modelo: o herói, via de regra, é alguém que sofre muito e a partir deste sofrimento mostra seu valor para, enfim, superar a tragédia e a adversidade.

Há um tempo de plantar… e plantar também é sonhar, por que não? Ambas as coisas se completam, deitar a semente ao solo e sentar ao sol para esperar seu crescimento, imaginando a doçura da colheita futura. O tempo de plantar pode ser justamente aquele em que a capacidade de sonhar parece perdida, onde corações machucados se recusam a acreditar na cor sobrepujando o cinza. A mão mais propícia para plantar um sorriso é aquela úmida das lágrimas que acaba de enxugar. Tempo de plantar, tempo de sonhar. Juntos e indissociáveis.

Haverá tempo de colher. Sonhos são dinâmicos, talvez não se colha exatamente o fruto sonhado, talvez seja de qualidade inferior, ou talvez inesperada e deliciosamente melhor que o sonho. Mas o dia chega, tão certo quanto o sol após a chuva ou a onda após o repuxo. E findará, porque haverá outro tempo de plantar… dá para aprender a ser feliz assim, como o agricultor Wang Lung: em tempos de miséria ou fartura, ele valoriza o prazer sutil e incontestável de aquecer-se ao sol na frente da própria casa. À frente dela, uma plantação viçosa sucede a esturricada pela seca, e assim será sempre… mas o sol aquece igualmente a pele sofrida do lavrador. Aliás, embora a vida desta família chinesa esteja permeada pela superstição, mesmo nesta há um senso prático que se contrapõe à nossa mentalidade ocidental religiosamente passiva – por exemplo, embora adorem deuses pessoais e peçam favores a eles, a família de Wang Lung não hesita em xingá-los e abandonar-lhes quando eles não correspondem às expectativas, preferindo resolver as coisas por conta própria a esperar ajuda divina.

Há o tempo de plantar! Há as noites de sono perdidas a velar por uma criança com febre, há a exaustão pelo trabalho extra que se fez apenas para melhorar a vida de alguém, há o esforço para não permitir que a rotina e o cansaço diminuam os gestos de carinho com aquele que se ama… é um tempo de sonhar com o futuro ao lado destas crianças, com a satisfação de quem se ajuda, com a felicidade de quem se ama… e haverá o tempo de colher os sorrisos das crianças travessas, a amizade desinteressada, o amor e companheirismo que resistem ao tempo.

(vamos colher juntos?)

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Thoreau, Lispector, Boyle… por vidas menos ordinárias

O ensaísta americano Thoreau (de novo ele) teria dito: “grande parte dos homens vive vidas de silencioso desespero”. O autor referia-se àqueles que vão “levando a vida” sem apreciar o modo como vivem, e embora externamente conformados com a imutabilidade de seu destino, estão permanentemente assombrados pela ausência de perspectiva de mudança no futuro. É uma frase célebre, eventual e periodicamente resgatada do limbo da história – o que indica que o desconforto com a mediocridade da vida é um ato incorporado em nossa cultura há muito tempo. Talvez desde que a luta pela sobrevivência tenha deixado de ser tão intestina que o homem pôde deixar de viver correndo de predadores para prestar atenção na decoração da caverna…

Às vezes escorregamos na armadilha de pensar que a infelicidade é uma palavra muito dura, sinônimo da desgraça, da tragédia, do dramalhão: infeliz é quem não tem onde morar, o que comer, que padece de câncer terminal, que perdeu a família no tsunami, e o resto é besteira… Não é o que nos dizem, acompanhado de tapinhas nas costas, se nos queixamos do incômodo de nossa rotina?

Ah, mas será?

Comparo a instatisfação com a ordinariedade da própria vida com um dispositivo de tortura medieval, chamado por alguns de “Cadeira de Judas”: um simulacro de trono recheado de ressaltos pontiagudos (que ainda podiam ser aquecidos), no qual o torturado deveria permanecer sentado a bel-prazer do torturador. Vista de longe, a vítima pareceria apenas a ocupante de uma poltrona comum.

A opressão de uma vida que não vai para frente, em que os sonhos morrem antes mesmo de nascer, pode ser tão cruel quanto a catástrofe – aliás, desta última quase sempre há rotas de fuga, períodos de superação e crescimento, mas da prisão de uma vida ordinária muitas vezes não há saída. A mídia que criamos e ajudamos a manter desde o século XIX grita a todo instante que TEMOS de ser felizes, vencedores, bem sucedidos, MELHORES QUE OS OUTROS, por isso acordar todos os dias sob a égide uma rotina ordinária e sufocante é ainda pior que na época de Thoreau.

O romance mais famoso de Clarice Lispector, “A Hora da Estrela“, toca justamente nesta ferida; sob o prisma da nordestina Macabéa e sua vida de horizontes limitados e sonhos mal paridos, cujo único momento de notoriedade e fuga do lugar-comum é a morte trágica no asfalto, quando “vomita uma estrela de mil pontas”. A sensação de sufocamento transmitida pela prosa de Lispector, apesar de incontestável, não é nem de perto comparável à das vidas de silencioso desespero que desfilam por nós todos os dias, nos ônibus lotados, nas filas de caixa eletrônico, nas passarelas de pedestres, no congestionamento das seis da tarde, nas esquinas mal dobradas entre camelôs e atrasados (sempre, sempre, sempre atrasados para alguma coisa).

Oh, maldito paradoxo: em tempos onde mais interessante e maravilhosa a vida se desdobra para o homem comum, mais e mais ele parece se enredar na opacidade e falta de perspectivas de seu cotidiano. O filme “Por uma Vida Menos Ordinária”, de Danny Boyle (1997, com Cameron Diaz e Ewan McGregor nos papéis principais, um belo casal), também brinca com o tema, mostrando que mesmo na aparente plenitude de uma vida milionária (a personagem de Diaz) a “maldição de Thoreau” pode se infiltrar. Aqui, tudo vai acabar bem, graças ao truque do “tente, invente, faça uma comédia romântica sem final diferente”… Boyle não é Tarantino, claro. Mas não é totalmente descabido acreditar na premissa do roteiro deste filme: às vezes é preciso dar um chute na porta da vida para encontrar a saída.

É, não deixa de ser uma boa metáfora essa… dar um chute na porta da vida. Claro, os presos na armadilha às vezes sequer conseguem mover as pernas… mas acredito que, seja como for, nunca podemos perder a capacidade de debater-se, de resistir, de (mesmo com o laço no pescoço) não aceitar a execução até o último instante. Os gaúchos possuem um ditado popular um pouco tosco, mas bem apropriado… “não tá morto quem peleia…!”. A própria luta para escapar do ordinário já torna a vida menos ordinária (o filme de Boyle insinua isso).

Há também que se lembrar… nem sempre o “ordinário” é “insuportável”. Para muitos, senão todos em alguma fase da vida, andar sobre os trilhos tem seu apelo confortante e evoca a palavra “rotina” em um sentido prazeroso, tal qual não consta sempre no dicionário da metafísica moderna (permeada de auto-ajuda viciosa…). Bom, na salada de filosofia, literatura, senso comum e cinema que já fiz neste post, acrescento como toque final a letra de “Ordinary World” do Duran Duran (ah, os anos 80…)

But I won’t cry for yesterday
there’s an ordinary world
Somehow I have to find
and as I try to make my way
to the ordinary world
I will learn to survive

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