Ciúme: o monstro dos olhos verdes (por Shakespeare e Érico Veríssimo)

Certa vez ouvi uma amiga dizer que “ciúme não é de todo ruim, a pessoa se sente valorizada”. Não é, de forma alguma, uma opinião unânime… outro conhecido, cansado de aborrecimentos constantes, proferiu profunda e diversa reflexão: “Ciúme é uma merda…!”
 

 

Será o ciúme uma necessidade antropológica, uma característica inata do Homo sapiens (para manter os parceiros sexuais e a futura prole sob controle), ou uma imposição cultural das sociedades monogâmicas? Discussões acadêmicas à parte, o ciúme já rendeu muito boa literatura. Já está presente nos mais antigos livros da Bíblia, motiva a Ilíada, explode alegremente no Decameron de Bocaccio, e torna-se lugar comum na literatura de folhetim dos dias de hoje. Mas sua maior expressão literária deve ser mesmo a peça Otelo, de Shakespeare.Embora a idéia não seja original (uma versão menos refinada da peça já existia na época de Shakespeare, e deve ter servido como base para Otelo), o tratamento dado a ela e a construção dos personagens a tornou uma das obras-primas da literatura universal. Otelo é, essencialmente, uma peça sobre o ciúme.

Resumindo (e simplificando), a ação é a seguinte: em Veneza, no século XV, um general do Exército chamado Otelo (de descendência árabe) casa-se com a filha de um importante Senador, a bela Desdêmona. O poder e a linda esposa de Otelo atraem a inveja de seus subordinados, especialmente um suboficial chamado Iago. A ira de Iago é ainda maior por Otelo tê-lo preterido em uma promoção por outro de seus comandados, o jovem Cássio. Através de mil artimanhas, Iago vai plantando em Otelo a sugestão de que Cássio é amante de Desdêmona. O que é mera insinuação vai sendo tão bem feito, com truques tão perversos, que Otelo acaba acreditando… O ciúme o deixa louco, transtornado. Tudo o mais se torna incidental, e ele acaba matando a esposa que ele ama – que na verdade o ama também, e arruinando tudo o que conquistou na vida.

Vale a pena ler o texto, ou assistir (não é tão bom, mas dá uma idéia) o filme “Othello”, com Lawrence Fishburne. Como é típico em Shakespeare, o aspecto psicológico é levado aos seus extremos, e aqui ele expõe todos os mecanismos venenosos do ciúme, e a incrível capacidade do sentimento em bloquear todas as outras emoções humanas (e o perigo latente nesta capacidade).

Desta peça, um trecho ficou particularmente famoso (do terceiro ato, uma fala de Iago): “Oh, tende cuidado com o ciúme. É um monstro de olhos verdes, que zomba da carne de que se alimenta”.

Por conta desta fala, criou-se a figura de linguagem “monstro de olhos verdes”, representando o ciúme. Usa-se “o monstro de olhos verdes” em literatura, em filosofia, em psicologia, em jornalismo… para Shakespeare, provavelmente, olhos esverdeados significavam beleza – uma contraposição imediata á palavra monstro. Com isso, queria denotar a natureza complexa e perigosa do ciúme.

Olhos verdes, aliás, que eram uma das características de Luzia Cambará, personagem de “O Continente”, da obra “O Tempo e o Vento” de Érico Veríssimo. De todos os sete volumes da obra, o capítulo que mais me fascinou era justamente o que apresentava Luzia (chama-se “A Teiniaguá”). Fico imaginando se Veríssimo colocou esta cor propositalmente nos olhos de Luzia, para ecoar Shakespeare , uma vez que o ciúme é um dos elementos fundamental em sua história.

Para quem não leu, Luzia Cambará é a esposa do filho do Capitão Rodrigo, Bolívar Cambará. Aparentemente, tem traços psicóticos (no mínimo fetiches de sadomasoquismo), e algumas de suas atitudes causam ciúmes doentios no marido. O personagem é simplesmente fascinante, denso e tão complexo quanto os personagens de Otelo. Lembro do seriado “Tempo e o Vento” que a Globo exibia em minha infância, e da Carla Camuratti interpretando a Luzia. Para mim, o rosto da atriz ficou indelevelmente marcado como a face de Luzia, e jamais consegui vê-la novamente sem fazer essa associação.

 Tive um grande desgosto ao assistir o DVD da série lançado pela Globo há alguns anos atrás, e constatar que todos os capítulos que mostravam Luzia haviam sido cortados da edição final (e é impossível achar até mesmo imagens de Camuratti como Luzia na web).

Luzia é apelidada de “Teiniguá” pelo narrador da história, porque é tão fascinante e perigosa quanto a Teiniaguá da lenda gaúcha (uma salamandra de cabeça faiscante que seduz os homens e guarda a Salamanca do Jarau, lugar de tesouros fabulosos).

A história de Luzia também tem um final trágico, mas marcantemente distinto do final de Otelo. Ao contrário de Shakespeare, em Érico Veríssimo a violência está mais relacionada ao contexto histórico-geográfico hostil e à natureza dos homens da trama do que à sutilezas psicológicas (realismo dos anos 30).

Na verdade, Luzia e Desdêmona são manifestações opostas dos efeitos do ciúme, tal qual as opiniões citadas no parágrafo inicial. Para Luzia, o ciúme do marido é excitante, algo que persegue e provoca. Luzia, que sente prazer no sofrimento alheio,  é uma beneficiária do ciúme. Desdêmona, ao contrário, é uma vítima do monstro de olhos verdes.

Não creio em amor sem ciúme, mas acho que o equilíbrio entre o ciúme desejável e o destrutivo é muito difícil de ser alcançado. Talvez obtê-lo seja um dos fatores do sucesso de uma relação.

E que saudades da Carla Camuratti…

Esse post foi publicado em Cinema, Literatura e marcado , , , , . Guardar link permanente.

5 respostas para Ciúme: o monstro dos olhos verdes (por Shakespeare e Érico Veríssimo)

  1. Ruthlea disse:

    Oi, tudo bem? Vi esse post por causa do comentário que você deixou lá no meu blog e achei excelente. Eu já li “Otelo” e estou lendo a série “O tempo e o vento” aos poucos e nunca me passou pela cabeça essa associação que você fez e que, de fato, faz todo sentido. Parabéns pelo post, foi muito bem escrito. Vou continuar acompanhando o seu blog.

    Abraços!

    • arleiro disse:

      Obrigado, Ruthlea. O blog de vocês é de dar água na boca, aos poucos vou degustando.
      Talvez Veríssimo não tenha pensado em uma associação destas, mas a verdade é que Shakespeare construiu tramas e personagens sobre coisas tão universais que é difícil qualquer produção literária escapar completamente dele. Pena que o rebaixem tanto na web (ver o post “Shakespeare assassinado”).
      Abração, volte sempre!

  2. NÁDIA CRUZ disse:

    Muito bom!!!
    Vc conseguiu sintetizar e associar as duas formas de ciúmes…uma que levou à morte, o objeto amado, e outra que sentia prazer em fazer o amado sofrer…
    Ciúmes é um sentimento complicado, ele pode destruir uma relação, e até uma vida…
    Um abraço,
    Nádia

  3. Fernanda Moraes Catelli disse:

    A ciumenta aqui passa a vez de deixar comentários, pois cada vez que leio algo nesse sentido, a consciência (culpada) aperta e Shakeaspeare se faz presente em minha vida. Uma verdadeira loucura! Entretanto, isso não é desculpa para deixar de dizer que adorei o texto, realmente mto bem escrito e verdadeiramente encantador. Beijos

  4. marcio disse:

    eu morro de ciume

Deixe um comentário