Lissa

* este é um trecho do que se poderia chamar de um eterno rascunho… um capítulo de um livro tantas vezes revisado, adormecido em gavetas, que talvez algum dia venha à luz, feito sonhos pendurados em nuvens que esperam a hora certa da chuva…

(…)

Quando o inverno mal começara, houve alguns dias de calor inesperado, uma espécie de nostalgia do verão esturricante que se despedira ainda em março. As tardes eram amenas, as noites agradáveis. Era algo inusitado para o inverno que conhecíamos, quando o vento dobrava furiosamente as esquinas e nos empurrava para dentro das casas logo apos o anoitecer.

Na sexta-feira à noite, eu já estudava para o vestibular por cerca de três horas… estava cansado. Mas o ar que entrava pela janela era tão gentil, tão convidativo, que não sentia sono. Apenas uma vontade de fugir, uma excitação, desejo de realizar mil coisas. Fiquei divagando alguns minutos sobre os cadernos abertos, sonhando toda e qualquer tolice juvenil que eu não ousasse sonhar de modo mais consciente.

Resolvi sair de casa. Minha mãe estranhou, não era meu estilo. Ora, era uma noite diferente. Não vesti nada especial, mas escovei os dentes com cautela. Caminhei feliz pelas felizes ruas iluminadas, onde carros felizes passavam cheios de gente feliz e músicas felizes soavam ao longe, perto dos anúncios felizes e felizes luminosos da pizzaria e da sorveteria.

Era próprio das noites de qualquer época do ano que os jovens estacionassem os carros na avenida central, ligando o som tão alto quanto possível, e todos ficassem encostados nas latarias, voltados para as calçadas. Mesmo quem não conhecesse o dono do carro tinha o direito implícito de encostar, garantido por alguma lei ancestral não escrita no código de posturas do município. A pizzaria vendia cerveja que garçons entregavam nos carros indicados, como se fossem mesas numeradas do bar. Capôs e porta-malas às vezes tornavam-se mesas de piquenique. Quem não encostava nos carros poderia encostar nos postes ou nas paredes, nas demais pessoas, no meio-fio… o importante era encostar. O principal passatempo, além desse, era dirigir pela única avenida muito devagar, janelas abertas e atrapalhando o trânsito, chegar ao final, subir pelo outro lado e repetir o processo. Lá pela décima volta, definir onde estacionar, descer e acrescentar um novo grupo de aço e fibra para o encosto geral.

Parece idiota, mas era o máximo. Ao menos hoje parece tão ingênuo e despojado como a juventude das pequenas cidades. Já fui membro desse clube, mas temo que tenha sido expulso por inadimplência. Embora seja difícil admitir, sinto saudades.

Eu não estava muito disposto a encostar em qualquer coisa, queria mesmo era caminhar, caminhar a noite inteira. Sentia uma vontade doida de respirar aquele ar maravilhoso, embriagar os pulmões. Ao que parece, tal ar naquela sexta-feira também havia produzido seu efeito nos demais. A avenida estava entupida, congesta de carros e pessoas. Era a minha geração, e isso me deixava à vontade, mesmo sendo um introvertido. Cumprimentava algumas pessoas com um aceno e um “e aí” (que era respondido com outro “e aí” e assim por diante).

Em um dado momento, quando caminhava distraído olhando a vitrine da loja de discos, um braço me puxou, e só então percebi que alguém estivera chamando meu nome:

– … parece surdo!

Era Lissa em pessoa, encostada com mais cinco ou seis garotas. Duas eram colegas do terceiro ano, as outras eu nunca havia visto mais gordas. Acho que, pego de surpresa, só murmurei um “oi, e aí?”. Não estou sendo hipócrita ao confessar que nem imaginava encontrá-la quando saí de casa naquela noite. Não pensava em Lissa há algum tempo.

– Eu achei que você dormia com as galinhas! Nunca vi você na rua!

Sorri amarelo. Não sabia se estava a fim ou não de começar um joguinho de gato e rato. Nem de tentar avaliar o que eu ainda sentia por Lissa ou menos ainda o que ela pudesse estar sentindo por mim. Creio que em outra noite eu tivesse dito mais duas ou três bobagens e seguido adiante. Mas naquela…

Encostei no primeiro pára-lama que vagou ao lado de Lissa. Alguém que eu nunca tinha visto alcançou-me um copo de cerveja, bebi um pouco e passei adiante. Outros passaram por mim, enquanto conversava com Lissa. Sobre o quê? Sobre estar quente, vestibular, filmes e….

– Você gosta disso? Eu acho meio esquisito.

– Ah, Lissa! Você nunca deve ter ouvido Pink Floyd. Pelo menos nunca deve ter ouvido direito. Vou emprestar o “The Wall” e você vê se gosta.

– Empresta mesmo ?

– Claro que sim.

– Mas tem de levar lá em casa.

Encarei-a, tentando desvendar as intenções no olhar de piscina. Ela brincava com uma sensualidade infantil, seus lábios vibravam. Era um convite, era verdade. Não recuei, embora meu coração acelerasse o ritmo:

– Achei que na sua casa só entrasse o Gustavo.

Ela riu, de um modo um pouco afetado. Adorou a deixa:

– O Gustavo não entra lá tem um tempão. E o que você sabe disso?

– Nada de mais, ué. Só pensei…

– Não tenho nada com o Gustavo.

– Eu sei.

– Sabe como?

– Tem coisas que faço questão de saber. Mas só queria conferir.

Ela me fitou com o queixo inclinado perigosamente contra o peito, como quem marca um inimigo para a morte nos filmes de faroeste. Mas sorria. Um sorriso malicioso, com a boca entreaberta e os dentes rangendo levemente. Ora, era assim que funcionava? Eu era capaz disso? Ela continuou:

– Por que você quase não sai de casa?

– Ei, não é bem assim. Eu saio, mas não sou de agitar. Às vezes vou com o Daniel comer uma pizza, apareço nas festas que posso…

– Ah, mas poderia dar o ar da sua graça mais vezes.

– Duvido que alguém sinta minha falta.

– Nossa, que desânimo! Está querendo ouvir um elogio?

Ela sorriu plenamente, talvez o mais belo sorriso que ela jamais tenha me dedicado. Desaparecera toda aquela encenação, o jogo de expressões e palavras de nosso cotidiano. Era um sorriso de criança que recebe um doce. Pela primeira vez desde que a conheci, ela agia naturalmente. Era a noite, era o ar, eram nosso dezessete anos. Sorri também e olhei para o céu, que para completar estava pleno de estrelas que brilhavam mesmo apesar do néon da pizzaria. Baixei os olhos para Lissa, buscando na sua expressão coragem para finalmente perguntar:

– Vamos caminhar um pouco ?

Ela hesitou alguns segundos, e eu tive medo de ter dito a coisa errada. Mas afastou-se do carro, e para minha surpresa, empurrou-me para a frente:

– Vamos!

Não falamos nada por meio quarteirão, apenas observando o movimento. Ela parecia esperar que eu tomasse alguma atitude, mas por fim segurou minha mão quando o burburinho diminuiu e chegamos a um local pouco movimentado.

Posso viver mil anos, escalar o Everest, fazer amor com a suprema übermodel, andar na Lua, ver crescer meus netos, descobrir que Deus existe, ganhar sozinho em alguma loteria, e mesmo assim nunca mais vou ter a mesma sensação de felicidade e paz daqueles minutos de caminhada. Pela primeira vez em minha vida de tartaruga, eu não tinha medo nem apatia. Tudo estava em seu lugar, o calor daquela mão era um foco de energia, de saciedade e de uma inexplicável vontade de viver. Deveria ter embalsamado a mão de Lissa para guardar em meu armário.

Acabamos sentando em um dos bancos à frente do clube Comercial. Ficamos alguns minutos observando disfarçadamente um casal de namorados mais abaixo. Acreditem ou não, o banco era mais seguro do que o da delegacia de polícia.

– A tua timidez te dá mais charme, sabia?

Sorri, um pouco constrangido. Estava a fim de beijar aqueles lábios finos, e torcia para que ela me ajudasse, ou poderíamos ficar até o ano-novo naquele banco sem que nada acontecesse. Lissa parecia entender o quanto eu era travado (apesar do “charme”) e inclinou o corpo, deitando a cabeça em meu colo. O coração disparou, sentindo aquele contato todo, um calor concentrando-se abaixo do umbigo. Eram os cabelos de Lissa que caíam sobre minhas pernas, aquele corpo que havia me fascinado colado ao meu. Ela brincou com a ponta dos dedos em minha boca, e sorriu convidativamente. Finalmente, a fechadura se rompeu em mim, e com uma violenta taquicardia abaixei meu rosto até tocarmos nossos lábios.

Lissa me ensinou o que era um beijo. Eu sequer imaginava uma sensação tão quente e tão divina. Aqueles momentos desligaram o restante, eu ficava entre extasiado pela descoberta e atento ao aprendizado. Parte de mim estava apreensiva, com medo de parecer muito ingênuo e decepcioná-la. Mas mesmo assim deixei-me levar, enquanto minha alma sorria.

Por uns cinco ou dez minutos, apenas nos beijamos. Minhas costas reclamaram da posição, e gentilmente trouxe Lissa de volta ao meu lado. Não me lembro de uma única palavra que possamos ter trocado, nem tampouco que fosse necessário dizer alguma coisa. E eu tinha muito a dizer, de tudo o que havia sentido ou ainda sentia por ela, talvez explicar como seus olhos eram lindos, ou alguma coisa assim. Mas a poesia que ela pudesse inspirar não surgia em minha língua. O momento era tão pleno que falar qualquer coisa seria como jogar uma pedra em um palácio de cristal. Por outro lado, eu não esperava que Lissa manifestasse algo a meu respeito. Não era seu estilo.

Mas aquela menina magra de cabelos que lembravam a Cachinhos Dourados da história infantil, cheia de complexos e lugares-comuns, foi o primeiro oásis do meu deserto interior. Para ser sincero, talvez tenha sido o único verdadeiro. A minha balzaquiana inocência foi acalentada naquela noite, e apenas olhando as estrelas acima de nós eu cheguei a acreditar que tudo na vida era simples, que era possível se apaixonar e amar sem dor, sem culpa, sem arranhões. Todas as bocas que já beijei foram miragens, sempre uma busca pelo adolescente que sentou naquele banco, vigiado pelo olhar majestoso da Via-Láctea.

Abraçados, conversamos com aquela intimidade que surge quando se fala quase aos sussurros. Contei-lhe alguns segredos fundamentais da minha vida, como o dia em que joguei o gato dentro da privada, e ela me revelou que seu primeiro beijo acontecera com um garoto argentino, no final de um carnaval na beira da praia quatro anos atrás. Contei-lhe de minha paixão por miniaturas de carros antigos, e ela descreveu o vestido que usou na festa de seus quinze anos.

Bom, meus senhores, nada de importante foi dito sob aquelas estrelas. Nada que altere o destino da humanidade. Mas eu guardei em minha mente o instante em que Lissa sorriu sem descolar seus lábios dos meus, e no dia de minha morte quero que o filme da minha vida pare nesse quadro, a película queime aos pouquinhos e todo o resto não seja projetado.

Levei Lissa para casa, caminhando lenta e suavemente através da noite. Nada foi prometido, nada foi cobrado, e acho que os dois estavam leves como plumas ao vento. No sábado uma frente fria fechou o outono definitivamente, e precisei de minha velha jaqueta pela primeira vez no ano. Não lembro de outra noite de verão em nenhum dos invernos que se seguiram.

… e para Lissa, a quem não fui capaz de expressar tudo o que senti, deixo um mapa do tesouro.

Entre na terceira porta, à esquerda, da minha alma. Siga alguns passos até encontrar um jardim onde nunca jogaram guimbas de cigarro, latas amassadas de cerveja ou ilusões perdidas. Não há como errar, é o único assim em minha alma inteira. Caminhe pela trilha formada por turquesas de um azul pálido, até chegar em um lago de águas paradas, mas muito profundas. Não tente atravessar, não caia na água: terríveis angústias com tentáculos a puxarão para o fundo. Ao invés disso, apenas sente no banco de cimento, parecido com aqueles do clube Comercial, que fica junto ao lago. Jogue pedrinhas na água e espere, mesmo que por anos e anos, até que um vento sopre, carregado do odor de Tathy. O céu estará estrelado, então procure Aldebaran, a estrela que eu lhe ensinei a localizar naquela noite, e fixe uma linha reta até o horizonte. Essa linha indicará o local onde o tesouro está enterrado. Não será preciso cavar muito, eu nunca pude esconder meus sentimentos de modo mais profundo. Quando abrir a arca do tesouro encontrará uma jóia mal lapidada, mas que no entanto é a mais bela que eu conheço. Tem a forma de um coração de adolescente. Cuide bem dela, pois eu já não posso mais fazê-lo.

(…)

… a propósito, o livro se chama “Enquanto Havia o Sol”.

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10 respostas para Lissa

  1. Cris disse:

    Sei muito pouco de vc, Arlei. Quase nada.
    Sei que vc trabalha na área de odontologia e sei que é pai de uma menina. Só isso.
    Não preciso saber mais nada para dizer que vc é também um tremendo egoísta!
    Esse é o trecho de um livro seu engavetado? Apenas a pontinha de um diamante, ao contrário do texto, inteiramente lapidado!
    Vá em frente, publique seu livro, ouse, empreste, divida seu tesouro. Tenho certeza que há muito dentro de vc. Não faltará segredo para guardar e resguardar apenas no seu coração, mas não deixe esse livro fora de nossas prateleiras, dos nossos olhos.
    Eu leio muito, Arlei. Acho que posso dizer com toda a certeza que as Saraivas da vida, Sicilianos de shoppings, não andam recebendo muita coisa boa ultimamente. Raras exceções. Nos últimos cinco anos, recomendaria com todas as honras apenas um livro: Caçador de Pipas.
    Pense com carinho…..rs

    Seu post é magnífico. Lindo!

    beijo !

  2. Fred disse:

    I second that… tô sem palavras aqui! Abraço, meu amigo!

  3. Não, sei se foi vc quem escreveu isso, ou se foi psicografado pelos anjos da literatura, divinamente poético cheio de carisma e plenitude, conseguiu me fazer palpar cada uma de suas palavras, aqui fica um apelo, peloooooooooooo amooooooooooooorrrrrrrrrrr de deus, nao nos negue o prazer de sua literatura, publique ….
    ah e não se esqueça de me convidar pro lançamento, não perderia por nada.
    Abraços…..

  4. Walewska disse:

    Concordo com a Cris…Divida seu tesouro!!!!!!!Magnífico!!

  5. NADIA CRUZ disse:

    Arlei,
    Acho que já disseram tudo….
    Simplesmente lindo !
    Publica logoooooo!! rs
    Abração!

  6. T. disse:

    Polifonia sentida !

    Terá natureza de ‘moto perpetuo’ esse Adagio tão solista…

  7. Gi Cano disse:

    Que maldade deixar todo mundo na vontade de ver o livro todo!
    Assino embaixo o que o pessoal falou, pelomenos 7 exemplares (até agora, rs) vc vai vender, rs
    Bjos

  8. Estela Garcia disse:

    olá

    gostaria de dar, de graça, um ou dois conselhos. Sei o que dizem por aí – que, se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia. Mas também sei o que está escrito na Bíblia, o Livro dos livros: “Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça”. Palavras da salvação. Bom, que ouça e que tire o máximo proveito de tudo que ouvir, emendo eu. O seu texto não está de todo mau. Pelo contrário, está bem escrito, no capricho. Mas há nele um grave defeito: não contém grandes novidades, em aproximadamente 80% do conteúdo. A grande extensão do texto para contar pequenos detalhes de um encontro casual com uma garota apenas cansam o leitor. Também são desnecessários muitos dos detalhes do tal encontro. Machado de Assis, por exemplo, nunca fazia isto. Ele apenas sugeria, como no passeio de Sofia e Rubião no romance Quincas Borba. O mestre simplesmente nos diz que os dois entraram no cupê (o cupê era um carro puxado a cavalos, do século XIX), e deixa o leitor imaginar o que eles teriam feito naquele cupê que deu voltas e mais voltas pelas ruas do Rio de Janeiro daquela época. Eis o poder da sugestão, que tão bem foi utilizado pela pintura impressionista, em oposição à crueza da narração concreta dos fatos – tal qual a lição do Realismo, que, segundo o mesmo Machado de Assis, “não presta para nada”. Então, o meu conselho é o seguinte: pegue o texto, revise-o, tome emprestado a navalha de Occam (Occam foi um frade franciscano inglês que viveu no século XIV e dizia que “não se deve multiplicar a existência dos seres mais do que o necessário”), vá cortando o texto, deixando somente aquilo que vale a pena, que possui algum sabor de novidade. É isso. Espero que não leve o meu conselho a mal.

    • arleiro disse:

      Estela,

      não apenas não levo a mal como agradeço: penso que um blog é exatamente uma vidraça, com todas as prerrogativas e riscos que uma vidraça oferece. E aprecio mais comentários como o seu que elogios protocolares.

      Gosto muito do Machado, como já disse aqui no blog, mas não me considero capaz de adotar seu método de prosa… aí já são coisas que envolvem identificação, estilo e de falta de talento mesmo. Também é preciso considerar que o texto que está no blog é um excerto, que faz parte de um contexto maior, em que os detalhes têm sua razão de ser… mas o teu comentário me fará realmente revisá-lo, dedicar um outro olhar.

      Afinal, por mais despretensioso que seja o blog e meu “romance”, pretendo sempre fazer o melhor que posso, mesmo que seja para minha própria satisfação.

      Obrigado pelo conselho e pela paciência, e seja sempre bem-vinda!

  9. Media Pauletto disse:

    Arlei!
    Já são oito exemplares….
    Adoro teus textos….
    Aguardo tua publicação.
    Abraço

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